
Por Zeugma Santos
Era para ser um dia comum. Mas bastou um telefonema para que tudo mudasse.
Meu irmão estava na UPA. Seu estado era crítico. O médico que o atendia, atento e cuidadoso, decidiu pedir o parecer de um colega do hospital de base. Precisavam confirmar a gravidade da situação e iniciar o tratamento certo. Para isso, era preciso uma ambulância. A solicitação foi feita. A espera começou.
A ambulância demorou.
Dentro da UPA, vivi o que muitos vivem — a angústia que não se explica. O tempo ali tem outro ritmo. O som das campainhas antigas, as conversas apressadas dos corredores, a música que tenta quebrar o silêncio duro dos hospitais. Eu vi tudo de perto. Vi o médico cansado, mas presente. Atendia um, depois outro. Com paciência. Com humanidade.
A ambulância que chegou pertencia à UTI Vida. E aqui, faço questão de registrar: os profissionais daquela equipe foram além do dever. Eles observaram. Disseram não a uma ordem que ignorava a realidade da UPA — que também estava cheia de vidas esperando. Uma das integrantes afirmou: os pacientes da UPA também seriam atendidos, sim.
Ela levou um. Voltou. E então, levou meu irmão.
No hospital de base, um médico — mesmo saindo de uma cirurgia — ficou. Exausto, mas firme. Aguardou para atender não só meu irmão, mas outros pacientes que esperavam. Era tarde da noite quando ele escreveu o parecer. Um relatório cuidadoso, essencial para dar início ao tratamento certo.
A equipe da ambulância esperou. E depois trouxe meu irmão de volta.
Foi nesse momento, exausta, mas em paz, que me lembrei de uma conversa recente. Um grande amigo me ligou perguntando se, ao escrever minha crônica Ainda estamos na caverna, só que agora com Wi-Fi, eu tinha me inspirado em Platão. Respondi que não. Que foi outra experiência, outro silêncio, que me levou à escrita. Mas depois reli Platão. E entendi.
Foi nessa leitura que reencontrei o mito da caverna, que aparece em sua obra A República (PLATÃO, 2006), e me fez pensar: às vezes, voltar à caverna é um dever moral. Porque há quem ainda esteja lá dentro — e precisa de alguém que estenda a mão.
Um outro amigo, em uma conversa sobre tudo o que aconteceu, me trouxe uma lembrança de Freud. Ele mencionou como o sofrimento psíquico pode ser comparado a um retorno às dores mais primitivas da existência. Em O mal-estar na civilização (FREUD, 2010), Freud fala sobre esse desconforto profundo, que nos acompanha mesmo em tempos de avanços e conforto. Faz sentido: porque não importa o progresso, há dores que continuam sendo cavernas.
E foi aí que uma terceira imagem me visitou. Não de um filósofo ou psicanalista, mas do texto bíblico que me acompanha desde criança. “Vinde a mim todos os que estais cansados e oprimidos, e eu vos aliviarei” (BÍBLIA SAGRADA, Mateus 11:28). Uma promessa. Uma âncora.
E ali, naquele instante de silêncio e luz fraca, me veio outra imagem. Pensei no celular. Aquele mesmo que, em outros dias, parecia um porrete — pesado, inútil, barulhento. Agora, ele não feria, não isolava. Agora, era mão estendida. Um gesto. Um sopro. Era alguém do outro lado dizendo: “estou aqui”.
Porque tudo depende de como usamos o que está em nossas mãos. O celular não mudou — quem mudou fui eu. Ele pode ser o eco do vazio, ou pode ser a luz que atravessa a escuridão. Pode ser caverna, ou pode ser caminho para fora dela.
Às vezes, tudo o que o outro precisa é de alguém que, mesmo de longe, acenda a luz certa. Nem que seja por um instante.
Meus amigos são reais — não talvez como supostamente Sócrates. E foi por isso que a mão deles me alcançou, quando eu já achava que não havia mais saída.
Foi um dia de agonia. De gratidão. E de fé.
A fé que me sustenta quando lembro das palavras do Mestre:
“Vinde a mim todos os que estais cansados e oprimidos, e eu vos aliviarei.”
(BÍBLIA SAGRADA, Mateus 11:28)
E eu fui.
E Ele me sustentou.
Porque, mesmo quando achamos que não temos forças para ajudar alguém, ainda assim, sempre podemos. Às vezes, tudo o que o outro precisa é de quem o leve até a luz — mesmo que seja só por um instante.