Brasília convive com o contraste entre a riqueza distribuída a autoridades e servidores públicos federais e bolsões de miséria que estão nos arredores e até mesmo dentro da cidade
Por FolhaPress
A 15 quilômetros do centro de Brasília, parte do lixo produzido pelos moradores do centro do poder político e abrigo para a população com a maior renda média do país passa pelas mãos de Cleidia Moreira de Jesus, 41.
Ela vive com os quatro filhos na região administrativa de Cidade Estrutural e trabalha sem carteira assinada em um galpão de reciclagem.
Em contraste com a média do Distrito Federal, a comunidade onde Cleidia mora tem o Índice de Desenvolvimento Humano (IDH) mais baixo da região, um coeficiente similar ao registrado no Timor-Leste, país extremamente pobre no sudeste asiático.
Brasília convive com o contraste entre a riqueza distribuída a autoridades e servidores públicos federais e bolsões de miséria que estão nos arredores e até mesmo dentro da cidade.
Retrato de Cleidia Moreira de Jesus, 41 anos, que vive com os filhos em Cidade Estrutural, região O rendimento mensal per capita no Distrito Federal está em R$ 2.475, o que coloca a região no topo do ranking do país, segundo o IBGE. A capital federal também ocupa a liderança do IDH, aponta o atlas organizado pelo Pnud (Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento). A classificação coloca os moradores do DF em condições semelhantes às de Portugal e Grécia.
No sentido oposto, o Distrito Federal aparece entre os piores colocados do país nas classificações do índice de Gini, que mede o grau de desigualdade de renda.
No canteiro central da via de acesso à Esplanada dos Ministérios, dentro de um raio de um quilômetro do Palácio do Planalto e do Congresso Nacional, Caylane Vitória, 19, e Vinícius Araújo, 20, vivem com o filho de dois anos em uma barraca improvisada.
Ao lado das sedes dos três Poderes, mas distantes dos olhos do governo, eles não recebem benefícios de programas sociais, não encontram trabalho formal e sobrevivem com pequenas doações de pessoas que passam pelo local.
“Os que têm mais dinheiro são os que não ajudam”, diz Araújo. “Está difícil até para comer.”
Vitória afirma que tentou se cadastrar no Bolsa Família, mas o pedido não foi aceito. Também não recebeu o auxílio emergencial durante a pandemia.
Morando na rua, eles dizem ser difícil focar nos estudos. Araújo deixou a escola no sexto ano e Vitória tenta agora avançar na educação de jovens e adultos.
A realidade do casal contrasta com o nível médio de ensino no DF, que está entre as maiores notas do Índice de Desenvolvimento da Educação Básica, medido pelo Ministério da Educação.
Os dois tratam o emprego com carteira assinada como algo que não é possível no momento. Eles são vendedores ambulantes, mas estão sem atividade desde o início da pandemia do coronavírus.
Com a retomada da economia, afirmam que ainda não conseguiram recursos para comprar o estoque de panos de prato que costumavam revender. Além disso, dizem que já foram agredidos por seguranças de estabelecimentos comerciais de Brasília que tentam afastar os vendedores ambulantes.
“A gente não está conseguindo investir [nos produtos] e nem vender. E não temos celular, né? As pessoas não estão usando dinheiro, é só no Pix”, disse o jovem.
Há trinta e oito anos vivendo no entorno de Brasília, Cleidia relata dificuldade de romper a barreira da pobreza e da informalidade.
Ainda criança, ela chegou de Goiás com os pais, que buscavam melhores condições de vida. Trabalhou na infância e na juventude como catadora no lixão da região. Estudou apenas até o quarto ano.
Depois que o lixão foi fechado, passou a atuar no galpão de reciclagem. Ela afirma que nunca teve a chance de ter a carteira de trabalho assinada.
“É difícil. Tem muitos anos que eu tento ver se consigo um trabalho fichado, mas ainda não consegui”, diz.
Com pagamentos de R$ 44 por dia trabalhado, ela consegue acumular até R$ 800 em um mês considerado bom -menos do que um salário mínimo, e o equivalente a um terço da renda per capita do Distrito Federal.
Cleidia vive em um barraco com paredes de madeira, em terreno irregular, com ligações improvisadas de água, esgoto e energia.
Ao receber a reportagem em casa, mostrou a geladeira, que tinha algumas garrafas d’água, um pote de margarina e meio pacote de molho de tomate. Eram três da tarde e a família ainda não tinha feito a refeição do dia.
Ela conta que esporadicamente recebe doações de alimentos de projetos sociais que atuam na região. É beneficiária do Bolsa Família e, com o incremento do auxílio emergencial, comprou uma televisão.
Cleidia aposta na educação dos filhos para conseguir melhorar a situação da família. Depois de quase quatro décadas na região, ela afirma que ainda não consegue atender aos desejos das crianças.
“O sonho da minha filha é sair daqui, mas eu não tenho dinheiro para comprar casa”, afirma, antes de contar que todos os filhos estão na escola e também são voluntários em projetos sociais que ajudam famílias em situação semelhante.