Apelidada no governo de “MP da liberdade de expressão”, a medida confronta diretamente a atuação das redes sociais
Paula Soprana
FolhaPress
A MP (medida provisória) editada pelo presidente Jair Bolsonaro para regular conteúdos das redes sociais, na véspera dos atos de 7 de setembro, limita não apenas o combate a notícias falsas, como também ao assédio, ao bullying e à xenofobia no Facebook, no YouTube, no Twitter e no TikTok.
O texto, que vem sendo trabalhado há alguns meses na Secretaria de Cultura, comandada por Mario Frias, estabelece que plataformas sejam impedidas de moderar conteúdos (como excluir ou diminuir seu alcance) que “impliquem censura de ordem política, ideológica, científica, artística ou religiosa”. As publicações passam a ser protegidas por direito autoral —uma relação inédita no campo de regulação de internet.
Apelidada no governo de “MP da liberdade de expressão”, a medida confronta diretamente a atuação das redes sociais em tentar conter a disseminação de conteúdo falso, como mentiras relacionadas à Covid.
A MP dá 30 dias para que as empresas se ajustem. O texto precisa ainda passar pelo Congresso.
A redação altera artigos do Marco Civil da Internet e determina que redes sociais com mais de 10 milhões de inscritos no país (portanto, apenas as gigantes de tecnologia) não removam conteúdos sem ordem da Justiça, com exceção de uma lista de assuntos que podem ser eliminados por justa causa.
Entram na lista de justa causa nudez, incitação de crimes contra a vida, pedofilia, terrorismo, tráfico, incitação de violência baseada em preconceito de raça, cor, sexo, etnia, religião ou orientação sexual, apologia a drogas ilícitas e à violência contra animais, entre outros.
Pelas regras em vigência hoje, as empresas têm autonomia para moderar o conteúdo que circula em suas plataformas. Elas têm coibido ou diminuído o alcance de discurso de ódio, informações erradas sobre a pandemia e conteúdos comprovadamente falsos segundo agências de checagem.
Especialistas chamam a atenção para os temas que ficaram de fora da lista, e que portanto não podem mais ser excluídos sem aval da Justiça: bullying, assédio, incitação ao uso de armas, xenofobia e notícias falsas.
Esses pontos já eram atacados pelas empresas após anos de pressão da sociedade civil.
“É uma mistura do texto do senador Angelo Coronel (PSD-BA), no projeto de lei das fake news, com pitadas de bolsonarismo. Traz um conceito de moderação de conteúdo que não existia no Marco Civil”, diz André Giacchetta, sócio do Pinheiro Neto Advogados.
A MP trata da moderação, mas deixa a desinformação de fora, o que proíbe qualquer tipo de atuação das plataformas no combate às notícias falsas. “É uma interferência excessiva do Estado na relação privada”, acrescenta.
Em sua página no Twitter, Mario Frias publicou uma foto ao lado de Bolsonaro no momento da assinatura da MP. “Nosso país não ficará refém da censura de um oligopólio”, afirmou o secretário, referindo-se às regras das grandes empresas.
Bolsonaro e seus apoiadores afirmam que têm a liberdade de expressão tolhida pelas redes sociais. Conteúdos que desinformavam sobre a Covid, como a promoção do uso de cloroquina, remédio sem eficácia contra a doença, foram eliminados nos últimos meses. Publicações de parlamentares e de Eduardo Bolsonaro (PSL-SP), filho do presidente, já foram rotuladas como enganosas no Twitter.
Além disso, STF (Supremo Tribunal Federal) e TSE (Tribunal Superior Eleitoral) têm ações contra páginas bolsonaristas investigadas por disseminar fake news. Sites e canais de apoio ao governo endossam a ofensiva contra as instituições e as redes sociais, alegando que a direita sofre censura —um exemplo seria o do canal Terça Livre, que trava um embate judicial com o YouTube.
Em comunicado, o governo justificou a medida dizendo que as redes sociais se tornaram um “relevante instrumento para a manifestação de ideias e opiniões por parte de milhões de brasileiros” e que, por isso, é importante disciplinar o direito da liberdade de expressão.
Disse que a “urgência e a relevância da medida decorrem do fato de que a remoção arbitrária e imotivada de contas, perfis e conteúdos por provedores de redes sociais” violam o debate público e a liberdade de expressão.
Várias organizações da sociedade civil se manifestaram na noite desta segunda (6) contra o texto, criticando também a falta de debate acerca do tema.
“A lista deixou de fora assuntos muito básicos, como spam, assédio e bullying. Não será possível, por exemplo, retirar o perfil de um homem que está ali só para assediar uma mulher. A ‘MP da liberdade de expressão’, mas saiu MP da blindagem, do spam, é para quebrar a internet”, diz Francisco Brito Cruz, diretor do Internet Lab.
A Safernet, que recebe denúncias de crimes online, afirma que a inclusão da nudez na lista de justa causa não é suficiente para combater a pornografia infantil, por exemplo, e acrescenta que essa nova dinâmica pode até atrapalhar investigações criminais.
“Algoritmos conseguem captar esquemas, palavras-chave usadas por grupos que caracterizam crimes contra crianças e adolescentes. Não é necessário publicar uma foto de nudez infantil para isso. As pessoas usam uma série de códigos. Tudo isso, a rigor, fica comprometido”, afirma Thiago Tavares, presidente da Safernet.
Os posts chamados caça-clique, que usam títulos sensacionalistas e atraem pessoas a sites com conteúdos falsos que se passam por noticiosos, também passariam a ser permitidos, de acordo com advogados.
“O texto foi cirúrgico ao determinar o tamanho das plataformas afetadas. Gab, Parler e BitChute, repositórios desse tipo de conteúdo, com links que vão diretamente para o WhatsApp, ficaram livres da medida do Bolsonaro”, acrescenta Tavares.
As empresas de tecnologia criticaram a MP, destacando que ela viola garantias constituicionais e que o Marco Civil foi um processo colaborativo e aberto.
O texto assinado por Bolsonaro também traz a previsão de sanções que seriam aplicadas por uma autoridade administrativa que não está explícita.