Identidade de tráfico e modus operandi de milícia. Os núcleos do Comando Vermelho (CV) no Ceará têm atuação forte na vida eleitoral do estado, sobretudo no interior. Documentos sigilosos obtidos pelo Jornal de Brasília apontam depoimentos de líderes da organização criminosa na região, cujas falas põem em xeque o processo eleitoral de, ao menos, três cidades cearenses: Aracati, Fortim e Itaiçaba. Nelas, interceptações telemáticas levaram a investigação a crer em interferências no processo democrático, além de mapear as ações do CV no estado.
Tudo começou quando a Divisão de Repressão às Organizações Criminosas Organizadas (Draco) se debruçou sobre a teia do CV no Ceará. Em 20 de novembro de 2020, com a prisão de Almerinda Marla Barbosa, tida como líder da organização no bairro Mondubim, em Fortaleza, e do Conselho de Guerra do grupo na região, um cadeado se destrancou para os investigadores. Conhecida por “Ruiva” e presente na lista de mais procurados da Secretaria de Segurança Público do Ceará (SSP/CE), ela teria, no celular, diversos registros da facção.
A quebra do sigilo telemático do aparelho revelou uma vasta rede de operações da facção no estado, sobretudo na periferia de Fortaleza e em cidades menores. Entre diálogos que acertavam venda de entorpecentes, compra e empréstimo de armas e coletes à prova de bola, execuções sumárias e até gerenciamento de imóveis, a investigação se deparou com uma conversa entre ela e Rener Castro de Souza, líder do CV em Aracati, no Oeste cearense.
Internamente, os integrantes se tratam por “irmão” e suas derivações, como “mano” e “mana”. Os diálogos foram mantidos da forma original. “O homem entrou, (…) nosso prefeito”, comemora Rener em conversa travada no dia 18 de novembro – três dias após o pleito. O candidato a quem ele se refere é Bismarck Costa Lima Pinheiro Maia (PSDB). “Eu agradeço demais pela força que tu me deu, por falar aquele negócio do Capitão Wagner”, aponta, referindo-se a um vídeo no qual o então candidato à Prefeitura de Fortaleza pelo Pros gravou vídeo de apoio a Caetano Neto (PSB), rival de Maia na urna.
A partir daí, o líder criminoso em Aracati passou, segundo ele próprio, a coagir cidadãos e desencorajar, pelo medo, os eleitores do pessebista. “Ai eu fiz só pegar, pedi o salve ao menino aqui, mandaram o salve e eu rasguei no meio do mundo”, dispara. O Jornal de Brasília entrou em contato com Caetano Neto e foi respondido pela assessoria do empresário, ex-vereador e hoje sem cargo público. A equipe do ex-candidato se disse “pega de supresa”. Segundo a comunicação do político e empresário, a aliança com Capitão Wagner (Pros) se deu na véspera da eleição e se limitou à publicação do vídeo.
Ainda de acordo com pessoas do entorno de Neto, não houve qualquer tipo de intimidação na campanha eleitoral, nem mesmo “ameaças veladas.” Citado como inimigo do Comando Vermelho, Wagner (Pros) declarou ao JBr. não ter dúvidas da influência da facção nas eleições municipais. “Os grupos criminosos sabem que a gente não vai fazer acordo com facção. O crime sabe que a gente vai fazer acordo. Ocorreu em Fortaleza também um “salve geral”, indica o político, já pré-candidato ao governo cearense. “Aqui o narcotráfico age como milícia. A maior favela da América Latina é em Pirambu. Lá, só podem vender internet com autorização da orcrim que domina a área”, ressalta.
“não esqueça do meu terreno”
A premiação para tal atitude de Rener, segundo ele próprio, seriam cargos nas Prefeituras. Após a vitória, conforme as interceptações policiais, houve até agradecimento de Bismarck. “Meu prefeito ganhou bem apertadim, mas quando foi ontem ele me agradeceu pelo o que eu fiz, tá entendendo?”, orgulha-se o chefe criminoso. “Só aqui em Aracati eu vou ter assessoria e um transportezim, né, um carro, só aí é 7.500 [reais] e lá no Fortin vou ter um carrinho lá. Aí em Itaiçaba eu tô só esperando o Frank se pronunciar, né?”, diz, em referência a Frank Gomes Freitas (PDT), eleito para o mais alto cargo de Fortim.
Rener é interpelado por Almerinda acerca de uma promessa de terreno feita em troca da ajuda no pleito. “Você não esqueça do meu terreno não, que eu não me esqueci não, viu?”, lembra a mulher. “E deposite o restim do dinheiro. E vc tem que ter alguém aí, para ficar ciente das coisas que acontece”, cobra Ruiva, por áudio. Almerinda aconselha que o chefe do CV em Aracati volte as energias à política e deixe o crime nas mãos dela, proposta bem recebida por Rener. O homem foi indiciado em 16 de junho deste ano por Tráfico de drogas e associação para fins de tráfico, além de participação em organização criminosa armada.
O JBr tentou contato com todos os prefeitos e Prefeituras citados nas conversas interceptadas. Em Fortim, governada por Naselmo de Sousa Ferreira (MDB), sequer os telefonemas foram atendidos; em Aracati, terra de Bismarck, não houve retorno do gabinete; por três vezes a reportagem entrou em contato pelo telefone da Prefeitura de Itaiçaba, governada por Frank Freitas. Em todas, a ligação foi encerrada pouco depois da identificação. E-mails foram disparados para todos os contatos disponíveis nas três cidades, mas não houve retorno até a publicação desta matéria. Os prefeitos não foram localizados.
ATUALIZAÇÃO: na tarde desta quinta-feira (22), o gabinete da Prefeitura de Fortim encaminhou nota à reportagem. No documento, o prefeito Naselmo de Sousa Ferreira (MDB) nega qualquer vínculo com a facção. Ele cita que o inquérito ao qual o Jornal de Brasília obteve acesso foi concluído em 15 de junho de 2021 sem qualquer menção a seu nome. “Na fl. 59 do referido inquérito foi apenas citado trecho de conversa de WhatsApp entre dois supostos traficantes, na qual um dos tais tenta justificar que pagará suas dívidas em breve, pois os prefeitos de Aracati, Itaiçaba e Fortim teriam sido vitoriosos”, completa a comunicação.