Com carta Olímpica mais branda, Tóquio pode representar marco em posicionamentos de competidores
Tóquio — Os Jogos Olímpicos da Cidade do México, em 1968, ficaram marcados por um gesto emblemático: os velocistas estadunidenses Tommie Smith e John Carlos, respectivamente medalhas de ouro e bronze nos 200 metros, subiram ao pódio descalços, baixaram a cabeça e ergueram o punho cerrado. A referência aos Panteras Negras foi um protesto silencioso contra a segregação racial e se tornaria um símbolo do esporte como ator político e social. Ao longo dos 125 anos da história olímpica, foram raras as cenas como aquela ou as protagonizadas por Jesse Owens, um homem negro, também nascido nos EUA, que brilhou em Berlim, 1936, durante o regime nazista e racista de Adolf Hitler. Os contextos mudaram e, em 2021, a Olimpíada de Tóquio tende a ser um novo marco por igualdade.
Pressionado por atletas, ex-atletas e torcedores, o Comitê Olímpico Internacional (COI) mudou as normas sobre posicionamento político durante o evento. Originalmente, a Regra 50.2 da Carta Olímpica proibia expressamente qualquer manifestação política, religiosa ou racial nas instalações dos Jogos, sob pretexto de “preservar a neutralidade do esporte e da própria Olimpíada”. As alterações anunciadas dias antes da Cerimônia de Abertura ampliam — ainda que ligeiramente — as possibilidades de manifestação dos participantes a partir desta edição. Em partidas da primeira rodada, jogadoras das seleções de Chile, EUA, Grã-Bretanha, Nova Zelândia e Suécia se ajoelharam em protesto antirracista.
Posicionar-se está liberado durante entrevistas, reuniões, redes sociais e antes do início das competições (na apresentação dos atletas, por exemplo). No entanto, as novas diretrizes do COI mantêm o pódio como lugar “sagrado”. Durante a entrega de medalhas, execução de hinos nacionais e as Cerimônias de Abertura e Encerramento, todos continuam proibidos de se manifestar.
“Ao expressar suas opiniões, os atletas devem respeitar as leis aplicáveis, os valores olímpicos e os demais atletas. Deve-se reconhecer que qualquer comportamento e/ou expressão que constitua ou indique discriminação, ódio, hostilidade ou potencial para violência em qualquer base é contrário aos Princípios Fundamentais do Olimpismo”, explicou o COI. São vetadas, também, as manifestações consideradas “disruptivas” — feitas durante hinos nacionais de outros competidores, por exemplo.
As alterações em normas históricas foram feitas após uma consulta com 3,5 mil atletas de todos os esportes olímpicos. “Embora as diretrizes ofereçam novas oportunidades para os atletas se expressarem antes da competição, elas preservam as competições no campo de jogo, as cerimônias, as cerimônias de vitória e a Vila Olímpica. Esse foi o desejo da grande maioria dos atletas em nossa consulta global”, justificou a presidente da Comissão de Atletas do COI, Kirsty Coventry, aliada de longa data do presidente do órgão, Thomas Bach.
Olímpico dos EUA. Diante da crescente onda de manifestações políticas e sociais de atletas (como o movimento “Black Lives Matter”, “Vidas Pretas Importam” em português), os dirigentes estadunidenses anunciaram que não punirão atletas que se posicionarem durante os Jogos do Japão. A falta de mudanças maiores pelo COI chegou a causar incômodo em alguns esportistas, que podem desafiar as normas.
“Quando chegar lá, descobrirei o que fazer”, disse Gwen Barry, favorita a medalha no lançamento de martelo e ativista pela igualdade racial. “O que preciso fazer é falar por minha comunidade, representar minha comunidade e ajudar minha comunidade, porque ela é muito mais importante do que este esporte”.
Porém, ainda que tímidas, as mudanças devem abrir espaço para mais manifestações de atletas. Em Tóquio, temas como racismo, LGBTfobia, xenofobia, desigualdade de gênero e intolerância religiosa devem virar pauta frequente nos debates e nas competições por meio de ícones esportivos. Listamos alguns deles a seguir.
Vozes de Tóquio // Quatro atletas defensores de causas sociais presentes na disputa olímpica
Richarlison
Do Brasil, um dos atletas mais ativos politicamente é o atacante Richarlison, ex-jogador do América-MG e do Fluminense e que atualmente defende o Everton, da Inglaterra. O camisa 10, autor de três gols na estreia brasileira contra a Alemanha, ontem, é ativo em várias lutas sociais. Recentemente, durante a Copa América, por exemplo, o jogador usou chuteiras em homenagem à ciência, como forma de incentivar o combate à covid-19 por meio da vacina. Em outras oportunidades, Richarlison defendeu o Pantanal, alvo de incêndios recordes em 2020, e publicou a hashtag #JustiçaporMariFerrer, jovem estuprada em 2018, cujo acusado do crime foi absolvido.
Naomi Osaka
A japonesa Naomi Osaka é presença recorrente no apoio a diversas lutas sociais. Durante o US Open de 2020, a número 2 do mundo usou máscaras de prevenção contra o coronavírus com nomes de vítimas da violência policial nos EUA, como George Floyd, Elijah McClain e Breonna Taylor. Algumas semanas antes, Osaka tinha anunciado que não iria jogar a semifinal do torneio WTA de Cincinnati, também nos EUA, após o caso Jacob Blake. Ele foi atingido por sete tiros nas costas, no estado de Wisconsin, e perdeu os movimentos abaixo da cintura. Após o posicionamento de Osaka, a própria organização do evento anunciou a suspensão dos jogos programados para o dia seguinte.
Gwen Berry
“Atleta ativista”. Isso é o que define Gwendolyn Berry, do atletismo dos Estados Unidos. Ela, que compõe a equipe do arremesso de martelo, virou as costas ao hino nacional na seletiva para Tóquio em mais um momento de protestos em sua carreira. A lançadora de martelo é vista como um dos ícones na luta antirracista no país e, em 2019, chegou a ser suspensa após cerrar o punho durante o hino nos Jogos Pan-Americanos de Lima, no Peru. Ela considera o hino estadunidense desrespeitoso para a população negra e não descarta novas manifestações no Japão. “Tenho orgulho de dizer que sou uma atleta olímpica por duas vezes e levarei a vontade de mudança comigo para Tóquio”, afirma.
Megan Rapinoe
Megan Rapinoe, estrela do time bicampeão mundial dos EUA, é um ícone dentro e fora de campo. A jogadora colabora com a Athlete Ally, uma organização que luta contra a homofobia no esporte, e com a Common Goal, que incentiva atletas profissionais a doar porcentagem do salário a causas sociais. Também é uma das atletas que mais se posiciona a favor da igualdade salarial e de investimento nos esportes femininos e masculinos. Antes mesmo de a seleção dos EUA vencer a Copa do Mundo de 2019, Megan afirmou que não iria à Casa Branca receber os cumprimentos do ex-presidente Donald Trump. Como resposta, ele disse que elas, primeiramente, deveriam ganhar a competição. Elas ganharam. E não fizeram a visita.