Entre 2010 e 2020, pelo menos 103 mil crianças e adolescentes morreram no Brasil, vítimas de agressão. Cerca de 2 mil vítimas tinham menos de 4 anos, segundo Sociedade Brasileira de Pediatria (SBP).
Dia estressante no trabalho, crianças agitadas e fazendo birra? Chega uma hora que a paciência vai embora.
Mas isso não é desculpa para usar da violência para “corrigir” os filhos, sob o discurso de “eu apanhei, mas estou aqui, vivo”. O problema é que nem todo mundo sobrevive, alerta a Sociedade Brasileira de Pediatria (SBP).
Pesquisas comprovam também que bater em criança gera danos neurológicos e psicológicos, além de ser uma prática considerada crime desde 2014. Um levantamento feito pelaSBP mostra que, entre 2010 e 2020, pelo menos 103.149 mil crianças e adolescentes com idade até 19 anos morreram no Brasil, vítimas de agressão. Pouco mais de 2 mil vítimas tinham menos de 4 anos.
Durante a pandemia, no ano passado, o Disque 100 recebeu 95 mil denúncias de agressão contra crianças. Em 83% dos casos, os agressores em o pai ou a mãe.
‘Um tapinha dói sim’
Para Kate Amaral, consultora de Disciplina Positiva e Neurociência, o fechamento das escolas e o isolamento obrigatório impediram que educadores e outras pessoas percebessem as agressões e fizessem denúncias.
“As pessoas não conhecem outra maneira de educar e vejo que pessoas se orgulham sobre essa criação como se ela fosse ótima. A palmada, que as pessoas dizem ser educativa, é a forma que foi passada para nós, pelos nossos pais e para os nossos pais pelos nossos avós. Mas essa forma não pode ser mais aceita nos dias de hoje por inúmeros motivos”, diz Kate.
Segundo a especialista, dar tapas, empurrões ou agredir – de qualquer forma – pode gerar danos neurológicos, emocionais e sociais nas crianças. Além disso, a falta de paciência para o diálogo pode terminar em tragédia ou em traumas para a vida toda, mesmo que inconscientes.
“Um tapinha dói sim e não é possível conviver com esses números. As pesquisas são sólidas e consistentes de que crianças que apanham têm mais dificuldades para dormir, mais ansiedade, com mais probabilidade de ter depressão e se tornam adultos mais inseguros também”, aponta Kate.
Especialistas também destacam que o uso da violência, física ou verbal, podem transformar as crianças em adultos violentos e cheios de inseguranças. “Vários estudos já comprovaram que sociedades que não batem em crianças são mais ricas porque também têm pessoas emocionalmente saudáveis, criativas e que foram encorajadas. Com isso, elas geram muito mais valor e têm muito menos problemas para serem tratadas!, diz a consultora.
“São pessoas, por exemplo, que não se permitem estar em um relacionamento abusivo porque aprenderam que amar não é bater.”
Disciplina positiva
Desde que engravidou da primeira filha, a Marina, que está com 5 anos, a professora Vanessa Bonfim Quaresma Nogueira, de 36 anos, passou a estudar a melhor forma de educar os filhos. Ela conta que quando era criança apanhou muito, o que a fez ser uma pessoa “ansiosa, muito reprimida e medrosa”.
Ela e o marido, José Nogueira, de 38 anos, concordaram que aplicar a disciplina positiva seria a melhor opção.
“A gente fez um pacto de criar as crianças de outra forma. Nós dois estamos na mesma página. As vezes estamos estressados e a primeira vontade é de dar uns berros, mas quando isso acontece, tudo dá errado”, conta Vanessa.
O casal afirma que não bate nas crianças e que também não há autoritarismo. Para eles, essa tem sido a melhor opção: o diálogo é que manda dentro de casa.
“Muita gente acha que é mimar, mas é criar alguém para aprender a expor o que sente e que vai saber lidar com as frustrações. Eu fui uma criança muito reprimida e tinha medo de tudo. Quando eu apanhava ficava triste e ressentida”, lembra a professora.
“Somos muito firmes com o que elas [as crianças] precisam fazer e eu percebo que nossos filhos são crianças mais tranquilas e seguras pra falar o que sentem e querem. Percebo que elas têm mais clareza do que eu quando era criança”, diz Vanessa.
Respeito
Segundo Kate Amaral, a disciplina positiva consiste em fazer com que os pais passem a tratar os filhos como eles gostariam de ser tratados. “Controlar os filhos pelo medo não traz resultados e só provoca vergonha e humilhação”, defende a consultora.
A ideia, segundo ela, é fazer com que as famílias desenvolvam o afeto e o respeito para que a convivência seja saudável, com base no diálogo.
“Hoje, existe outra forma de educar. Não é sendo permissivo, nem sendo agressivo. Existe um caminho intermediário.”
A especialista cita como exemplo a hora de dizer “não“. “Não é porque estou te dizendo ‘não’ que eu não te amo”, explica.
Franqueza
Em momentos de raiva ou estresse, Kate orienta que o melhor caminho é a franqueza. “É falar abertamente para a criança: Estou com raiva neste momento. Vou me acalmar e daqui a pouco a gente conversa. Isso também é educar”, ensina.
Para a especialista, as crianças não conseguem equilibrar as emoções e, então, é preciso desenvolver métodos para que elas consigam vivenciar e perceber o que fizeram de errado. “Quando a gente fala ou faz coisas ruins para uma criança, ela não deixa de gostar da gente. Os pais são referências, heróis. As crianças deixam de gostar delas mesmas. Se o pai diz que o filho é burro, ele vai achar que é burro mesmo”, diz Kate.
Isso porque, a leitura que a criança faz é diferente do entendimento dos adultos. “A gente que precisa entender o que está acontecendo com a criança e saber conversar, sobre tudo, de maneira firme e gentil”.
Barganhar ou premiar os filhos caso eles cumpram uma obrigação ou parem de fazer birra, também não é o melhor caminho.
“Falam tanto em corrupção, mas isso é corromper os filhos e o comportamento dele vai ser modulado neste sentido também. Ou seja, você faz o que eu quero e eu te dou o que você pede. Sem contar que é um tipo de manipulação também”, analisa a especialista.
Palmada é crime
Apesar da palmada, assim como o castigo, ser usada como método de educação por muitas famílias, bater em criança é crime previsto na Lei n. 13.010/2010, conhecida como Lei da Palmada.
A lei prevê punições contra pais ou responsáveis que praticarem castigos físicos, humilharem, ridicularizarem ou fizeram ameaças. A criança pode ser encaminhada a programas de proteção à família e também para um tratamento psicológico ou psiquiátrico.
Além disso, a legislação prevê a realização de cursos e programas de orientação e advertência para os agressores. A punição varia de acordo com gravidade do caso. (G1/DF)