Há quase 200 anos, um revolucionário pernambucano desafiou o racismo na Justiça americana: conheça o resgate de sua história
Era um dia frio e chuvoso de novembro de 1832 quando o imigrante brasileiro Emiliano Mundrucu entrou no barco a vapor Telegraph com sua mulher Harriet e sua filha Emiliana, de apenas um ano. Segundo registros históricos, a família acompanhava o brasileiro em uma viagem a trabalho da costa de Massachusetts, no nordeste dos Estados Unidos, até a ilha de Nantucket.
Durante a travessia, Harriet, que se sentia mal, tentou buscar abrigo com sua filha numa área do navio exclusiva para mulheres — mas as duas foram barradas. O motivo? Eram negras, e a “cabine de senhoras”, um ambiente confortável com beliches privativos, só permitia mulheres brancas.
Naquele momento, práticas segregacionistas separando brancos das pessoas “de cor” cresciam no norte dos Estados Unidos, onde a escravidão já não era permitida como no sul do país. O objetivo era manter a ideia de inferioridade dos negros mesmo após sua libertação, preservando a estrutura de privilégios e dominação em favor dos brancos.
Esse sistema se intensificou pelo país após a completa abolição da escravidão em 1865, em um regime formal de segregação que só foi proibido pelo Congresso americano um século depois, em 1964, após intensa luta negra por direitos civis.
Muito antes, porém, a família Mundrucu, de pele parda, não aceitou passivamente ser barrada e o episódio acabou dando origem a um processo judicial pioneiro contra a segregação racial nos Estados Unidos.
A ação impetrada em nome do brasileiro repercutiu amplamente na época, mas depois caiu no esquecimento e apenas nos últimos anos foi redescoberta por historiadores.
O caso foi parar na Justiça depois que Harriet insistiu em entrar no local com sua bebê, enquanto Mundrucu discutia com o capitão do barco, Edward Barker.
“Sua mulher não é uma senhora. Ela é uma N*”, disse o capitão a Mundrucu, usando uma expressão extremamente ofensiva para denominar pessoas negras.
O impasse chegou a ser momentaneamente interrompido porque uma tempestade obrigou o barco a retornar à costa. Ao voltar à embarcação no dia seguinte, no entanto, o casal tentou mais uma vez que Harriet e Emiliana viajassem protegidas, ao invés de usarem a cabine da parte da frente do navio, um ambiente comum para homens e mulheres em que os passageiros tinham que dormir em colchões, direto no chão molhado.
Mundrucu argumentava que elas tinham direito ao local mais confortável porque ele havia pago a tarifa mais cara para a viagem. Diante da irredutibilidade do capitão, que mandou a família descer do barco, o brasileiro anunciou que levaria o caso à Justiça.
De acordo com os arquivos do processo, Mundrucu prometeu “go and get a writ out immediately” — expressão que poderia ser traduzida na linguagem atual para: “Nos vemos no tribunal”.
Foi assim que teve início em Boston, capital de Massachusetts, um processo movido por Emiliano Mundrucu contra o capitão Edward Barker, por quebra de contrato, caso que recebeu cobertura na primeira página de jornais de Estados como Nova York, Pensilvânia, Maryland e Carolina do Norte e repercutiu até na Europa.
O renomado abolicionista inglês Edward Abdy, por exemplo, condenou a “aristocracia da pele” de Boston ao reportar o caso para a imprensa britânica, conta o historiador sul-africano Lloyd Belton, que em dezembro publicou um artigo sobre a batalha judicial de Mundrucu na revista acadêmica Slavery & Abolition.
Belton estudou a vida de Mundrucu em seu mestrado na Universidade de Columbia (EUA) e agora aprofunda sua pesquisa em um doutorado na Universidade de Leeds (Reino Unido).
Embora pouco conhecido hoje, ele diz que o processo movido pelo brasileiro é a ação mais antiga contra segregação racial que se tem informação até o momento nos Estados Unidos. Até essa descoberta, a historiografia sobre o tema indicava que esses processos começaram mais tarde, no início dos anos 1840.
Mas por que justamente um brasileiro estaria por trás de uma ação inédita como essa? A resposta exige um mergulho nos diferentes tipos de discriminação vigentes nos dois países e na trajetória incomum de Mundrucu — um revolucionário pernambucano que deixou o Brasil para escapar da execuçãoapós lutar na fracassada Confederação do Equador, tentativa de criar em 1824 uma república independente no Nordeste do Brasil e que ganharia esse nome pela proximidade do local com a linha que corta o globo em dois hemisférios.
“É incrível que um imigrante negro brasileiro tenha sido a primeira pessoa na história dos Estados Unidos a desafiar a segregação em um tribunal. E é ainda mais incrível que ninguém saiba quem ele é. Nos anos 1830, em Boston, as pessoas sabiam quem ele era. No Brasil, também”, disse Belton à BBC News Brasil.
Também estudiosa da vida de Emiliano Mundrucu, a historiadora americana Caitlin Fitz, professora da Northwestern University, diz que não só o processo judicial era pioneiro, mas também a ação do casal no barco.
O conhecido episódio em que o ex-escravizado Frederick Douglass, um dos mais importantes ativistas negros da história americana, entrou em um vagão exclusivo para brancos em um trem em Massachusetts e só saiu removido à força ocorreu em 1841, quase uma década depois.
“Não é apenas o primeiro processo conhecido contra a segregação no transporte, é também uma medida radical realmente ousada de colocar seu corpo em risco, a bordo de um navio”, afirma a americana.
O impacto do julgamento
Bem relacionado em Boston, Mundrucu foi representado no julgamento por juristas de peso. Um deles era David Lee Child, renomado abolicionista americano que falava português por ter atuado como diplomata em Portugal e se tornou seu amigo próximo.
Outro foi o senador por Massachusetts Daniel Webster, que depois veio a ser Secretário de Estado de três presidentes americanos (Henry Harrison, John Tyler e Millard Fillmore).
O argumento central do processo era “quebra de contrato”, já que Mundrucu pagou a passagem mais cara, mas seus advogados “também quiseram expor a inumanidade das práticas segregacionistas”, escreve o historiador Lloyd Belton em seu artigo.
Como a segregação no transporte público não estava prevista em lei, Child e Webster “tentaram representar Barker como um aplicador desumano de regras arbitrárias”, nota o historiador.
“Nenhuma senhora na terra de Deus, nenhuma pessoa branca instruída teria sido submetida a tal tratamento. A cor dos Mundrucus era sua única distinção”, sustentou Webster, segundo os registros do processo analisados por Belton.
Os advogados de Barker, por sua vez, rebateram dizendo que a segregação nos barcos a vapor era prática comumna costa nordeste americana, argumento que foi reforçado com depoimentos de capitães de navios de Nova York e Rhode Island.
Além disso, eles usaram outras testemunhas para reforçar que Emiliano e Harriet, embora não tivessem a pela escura, eram negros e só conviviam em seu ciclo social com pessoas negras. Na leitura de Belton, era uma estratégia para indicar que Mundrucu “presumidamente conhecia seu lugar na sociedade”.
Em outubro de 1833, o júri condenou Barker a pagar uma indenização de US$ 125 a Mundrucu. Mas o capitão conseguiu reverter a decisão na Corte Judicial Suprema de Massachusetts, que considerou não haver provas de que Barker havia explicitamente concordado que a família viajasse nas melhores cabines. O brasileiro ainda foi condenado a pagar as custas processuais do capitão.
Depois disso, nota Belton, o navio Telegraph passou a ter a segregação racial escrita em sua política de preços, de modo que negros só podiam comprar as passagens mais baratas, para viajar na cabine comum e mais exposta do navio, enquanto os brancos só podiam comprar as mais caras, com acesso às melhores cabines.
“Outro amplo impacto do caso é que a atitude desafiadora de Mundrucu inspirou diretamente outros ativistas negros. David Ruggles, ativista afro-americano muito famoso, fez exatamente a mesma coisa que Mundrucu no mesmo barco alguns anos depois, em 1841”, lembra o historiador.
Segundo Caitlin Fitz, outras empresas de transporte também passaram a prever expressamente em seus contratos a segregação racial nos anos seguintes. Por outro lado, isso levou os ativistas a usarem argumentos mais amplos contra o racismo nos processos judiciais, ou seja, indo além da queixa de quebra de contrato.
“O processo movido por Mundrucu acaba sendo um momento importante no desenvolvimento das táticas jurídicas dos ativistas. Ele amplia seus horizontes, abre caminho para esses argumentos mais amplos que atacam a própria base jurídica da segregação em si”, afirma.
Por que Mundrucu?
O que explica que um exilado brasileiro, ao lado de sua mulher afro-americana, tenha tido um papel pioneiro na luta contra a segregação racial dos Estados Unidos?
Para os historiadores, a resposta é uma combinação de fatores relacionada às experiências e trajetória incomuns de Mundrucu, um militar rebelde ou revolucionário, dependendo de que lado o definisse.
Há pouca informação sobre sua origem e não existem imagens conhecidas dele e de Harriet. A pesquisa histórica indica que ele nasceu em Pernambuco em 1791, filho de um homem com posses e uma mulher não branca, talvez uma das pessoas escravizadas por seu pai. Teve acesso à educação e ingressou na carreira militar.
O sobrenome Mundrucu — que aparece nos registros históricos com algumas variações, entre elas Mundurucu — pode sugerir uma ascendência indígena, relacionada ao povo Munduruku, que habita algumas partes da Amazônia.
Seu nome original, porém, era Emiliano Felipe Benício. O sobrenome Mundrucu (ou Mundurucu) foi incorporado em 1823 e seguia um costume entre revolucionários nas colônias americanas de adotar nomes de povos originários das Américas como manifestação de uma nova identidade nacionalista e independente da Europa.
Depois de lutar na fracassada Confederação do Equador, ele deixou Recife rumo a Boston em uma fuga no meio do carnaval, a bordo do navio Hope (Esperança), possivelmente com a ajuda de Joseph Ray, ex-cônsul dos EUA em Pernambuco, simpático a um regime republicano no Brasil.
Após uma primeira passagem breve pelos Estados Unidos, Mundrucu viveu também cerca de seis meses no Haiti. Ele era um admirador da Revolução Haitiana, rebelião de escravos e negros livres que tornou a colônia francesa independente da França em 1791.
Sem conseguir se estabelecer financeiramente por lá, o brasileiro seguiu para a Grã-Colômbia (atual Venezuela), onde viveu por cerca de um ano e meio. Voltou para Boston após se frustrar com a dificuldade em obter apoio do movimento de libertação das colônias espanholas liderado por Simón Bolívar para a criação da República de Pernambuco.
Para Belton, essa trajetória internacional e sua experiência no Brasil alimentaram sua indignação contra a segregação sofrida por sua família em Boston. Isso porque Mundrucu vinha de um país onde tinha mais direitos do que o negro livre nos Estados Unidos, como a possibilidade de votar e de ingressar no Exército.
No Brasil, a discriminação foi historicamente construída com base em uma classificação mais subjetiva de traços físicos, como tom da pele, feições e tipo de cabelo, hoje chamada de colorismo. Ou seja, indivíduos mais próximos do padrão branco tenderiam a sofrer menos preconceito. E, como no século 19 a população negra aqui era bem mais numerosa do que nos EUA, parte desse grupo conseguia se inserir em alguns espaços de poder, como a carreira militar.
Já nos Estados Unidos, todo não branco, independentemente de quão escura fosse sua pele, era considerado “pessoa de cor”, em um sistema mais rígido de classificação racial que tornava muito difícil qualquer ascensão social de negros.
Além da indignação provocada por essas diferenças, outro fator que contribuiu para Mundrucu processar Barker, acredita Belton, é que o brasileiro já tinha experiência com o sistema de Justiça americano. Ele vivia modestamente de um pequeno comércio de roupas de segunda mão e esteve envolvido em vinte processos judiciais civis entre 1828-1832, todos relacionados às suas atividades comerciais.
Para completar, ressalta o historiador, a rica rede de contatos estabelecida por Mundrucu em Boston, na comunidade abolicionista e na maçonaria, também foi determinante para a batalha judicial.
Exilado, Mundrucu vive nos Estados Unidos, Haiti e Venezuela
Antes do processo judicial contra o capitão do navio, Mundrucu já havia sido pioneiro ao ser o primeiro negro a ingressar em uma loja maçônica de Boston que até então só aceitava brancos, conta Caitlin Fitz. Ela acredita que sua admissão contou com o apoio de seu futuro advogado David Lee Child, que fez a tradução da sua cerimônia de iniciação.
Na avaliação da professora, o caso de Mundrucu se mostrou útil aos ativistas antissegregação por reforçar seu discurso de que a opressão racial nos Estados Unidos era pior do que em qualquer outro lugar, inclusive o Brasil.
O abolicionista inglês Edward Abdy, por exemplo, que conversou com Mundrucu antes do julgamento, escreveu que o racismo sofrido por ele em Boston “não era comparável a nada no seu país (Brasil)”, ao abordar o caso em seu Diário de residência e viagem nos Estado Unidos, publicação de 1835 sobre a opressão racial americana.
Essa comparação, porém, era “muito discutível”, ressalta a professora. O Brasil foi o último país das Américas a abolir a escravidão, em 1888.
“Mundrucu deu aos abolicionistas dos Estados Unidos evidências para defender sua tese de que os Estados Unidos eram o pior do mundo, no que diz respeito à escravidão e ao racismo. Essa é uma declaração muito discutível, mas é politicamente útil para os abolicionistas americanos”, nota Fitz.
Para a professora, as conexões de Mundrucu e o modo como o embate ocorreu a bordo do navio Telegraph sugerem que a ação pode ter sido inclusive premeditada, em parceria com outros ativistas.
“Às vezes presumimos que esses atos de resistência eram espontâneos, que Emiliano e Harriet ficaram com raiva (ao reagir). Talvez tenham ficado com raiva, mas também eram pensadores políticos estratégicos que estavam pensando com muito cuidado sobre a melhor maneira de trazer mudanças nessas circunstâncias”, acredita.
Quem moveu o processo contra o capitão foi Mundrucu, mas Caitlin Fitz destaca a importância do papel de Harriet.
“Não sabemos muito sobre Harriet. Ela era uma mulher de cor, educada, nascida em Boston. Podemos inferir que ela era bastante aventureira, porque afinal se casou com um revolucionário brasileiro que ainda estava aprendendo inglês. Era também incrivelmente corajosa e empenhada em lutar pela igualdade racial, já que tentou repetidamente entrar na cabine de senhoras, colocando seu corpo na linha de frente”, nota a professora.
A volta ao Brasil
Após a decisão favorável a Barker, a defesa de Mundrucu preparava um recurso para a Suprema Corte americana quando ele decidiu voltar ao Brasil em 1835 para retomar sua carreira no Exército. Isso foi possível após o governo brasileiro perdoar os revolucionários da Confederação do Equador, retirando a pena de morte contra ele.
Mundrucu, porém, ficou apenas alguns anos no Brasil, retornando a Boston em 1841.
Embora tenha sido perdoado pelo governo regencial, o exilado não foi bem recebido por todos, em especial em parte da elite branca pernambucana, que guardava grande ressentimento da sua atuação revolucionária em 1824. Isso porque Mundrucu era acusado de tentar atacar a população branca abastada de Recife.
Até as recentes pesquisas de historiadores estrangeiros sobre a vida de Mundrucu em Boston, o pernambucano era pontualmente lembrado na historiografia brasileira por sua tentativa de trazer para a Confederação do Equador o espírito da Revolução Haitiana — rebelião que assombrava as elites brancas nas Américas.
Mesmo a recém-lançada Enciclopédia Negra, da Companhia das Letras, que dedica um verbete a Mundrucu, não menciona a pioneira ação judicial movida por ele nos Estados Unidos.
Marco Morel, autor do livro A Revolução do Haiti e o Brasil escravista: O que não deve ser dito, é o historiador brasileiro que mais investigou a trajetória do revolucionário no Brasil.
De acordo com ele, as principais lideranças da Confederação do Equador pertenciam à elite branca administrativa e agrária, mas houve alianças com segmentos oprimidos social e racialmente, caso de Emiliano Mundrucu, que era major do Batalhão dos Pardos.
A partir de relatos da época, Morel conta em seu livro que Mundrucu liderou o batalhão numa tentativa de revidar um ataque inesperado das forças imperiais ao porto de Recife. Essa ação, porém, incluiria uma agressão à elite branca.
Segundo o historiador, foi planejado um “ataque ao comércio europeu nos bairros brancos centrais de Recife e o massacre dos referidos comerciantes e da população branca abastada”.
Com esse propósito, Mundrucu teria guiado sua tropa pelas ruas da cidade entoando uma canção que buscava inspiração em Henry Christophe, um dos principais líderes da Revolução Haitiana.
“Qual eu imito Cristóvão / Esse Imortal haitiano / Eia! Imitai o seu povo / Oh meu povo soberano”, cantou o Batalhão dos Pardos liderado por Mundrucu.
A intenção de atacar a população branca de Recife atribuída a Mundrucu não se concretizou por divergências dentro da própria Confederação, após o Batalhão de Pardos ser dissuadido pelo Batalhão de Homens Pretos, do major Agostinho Bezerra Cavalcanti.
Ainda assim, o episódio seguiu forte na memória das elites pernambucanas, que chamavam Mundrucu de “o segundo Calabar”, em referência ao português Domingos Calabar, que se uniu aos holandeses contra Portugal na invasão ao Nordeste durante o período colonial e tornou-se sinônimo de traidor.
Foi nesse contexto que Mundrucu retorna dos EUA e sofre grande resistência para subir na carreira militar. Ele chegou a ser indicado pelo governo regencial para comandar o Forte do Brum, importante fortaleza em Recife, mas não conseguiu assumir o posto ao sofrer intensos ataques de autoridades e oficiais pernambucanos.
Uma correspondência anônima, publicada com destaque no Diário de Pernambuco em fevereiro de 1837, por exemplo, atacava as qualificações de Mundrucu para o posto e afirmava que seus atos na Confederação do Equador tiveram “um caráter tão ominoso, e deixaram tão profunda sensação nos ânimos de todos os homens, que o seu Comando na Fortaleza do Brum era um fundado motivo de sustos e sobressaltos; ninguém se julgava seguro em seu sono e a desordem se pintava na imaginação de todos com a mais horrenda e turva catadura.”
Mais adiante, outro trecho da carta dizia que a nomeação de Mundrucu para o posto militar estava “dando combustão aos espíritos, dando lugar a que renasça das cinzas uma intriga, que muito convinha não suscitar mais, porque há indivíduos que nenhum outro mérito alegam senão a cor, como se essa devesse ser um privilégio para obterem empregos, para os quais nem suas habilitações, nem o conceito que merece do público de modo algum os qualificam”.
Mundrucu reagiu ao texto anônimo com longa carta, em que dizia que sua nomeação pelo governo buscava fazer valer a Constituição de 1824, para que “desapareçam os prejuízos de classe, ou de Cores”. Porém, continuava ele, com esses prejuízos “reinando infelizmente nessa província (de Pernambuco), mais que em nenhuma outra, não pode o autor do comunicado, e outros de iníquos sentimentos, ver de bom grado um oficial pardo em um lugar de distinção”.
“Parece que no sentir destes só julgam os Pardos, e Pretos, capazes nas ocasiões de crise ou de perigo”, rebatia ainda Mundrucu.
A carta evidencia como Mundrucu sentia que no Brasil, assim como em Boston, o preconceito contra sua cor o oprimia e limitava sua liberdade e suas conquistas.
Segundo Marco Morel, havia casos de outros homens negros que assumiram postos de comando militar no período imperial, como Pedro Pedroso, que foi comandante das armas em Recife no início do século 19.
Para ele, a resistência à nomeação de Mundrucu refletiu o racismo da época, intensificado pela grande aversão que havia a qualquer proximidade com ideais da Revolução Haitiana, um movimento que significava a completa subversão da ordem escravista.
O historiador ressalta que a segregação racial, embora no Brasil não fosse tão explícita como nos EUA, se manifestava no cotidiano do país.
Morel descreve em seu livro, por exemplo, o episódio em que o médico Joaquim Cândido Meirelles, um homem mulato, passou a ser também acusado de “haitianismo” após se opor em 1829 à separação dos doentes brancos e negros em alas diferentes da Santa Casa da Misericórdia do Rio de Janeiro, determinada pela direção do hospital.
A importância do resgate histórico de Mundrucu
“Quase 200 anos atrás um imigrante negro deu um passo contra a segregação nos Estados Unidos. Foi um momento muito importante na história americana e, de alguma forma, nós nos esquecemos disso”, constata o historiador Lloyd Belton.
O que explica esse apagamento? Para historiadores, o imigrante brasileiro — assim como outras lideranças negras — caiu no esquecimento porque a história tem sido contada principalmente pelas elites, que focam suas narrativas em si mesmas. É por isso que, tanto no Brasil quanto nos Estados Unidos, os protagonistas históricos geralmente são homens brancos.
“Eu diria sobre o esquecimento do Mundrucu a mesma coisa que digo sobre a Revolução do Haiti, que também é bastante desconhecida no Brasil. Acho que é uma mistura de preconceito e ignorância, por que o preconceito cria um bloqueio que gera uma ignorância”, acredita Marco Morel.
“As pessoas não falam dele hoje não é porque sejam racistas, não falam porque não sabem que ele existiu. E não sabem que existiu porque houve um racismo (no passado) que bloqueou isso”, explica o historiador.
Morel inicia o trecho sobre Mundrucu em seu livro o definindo como “figura histórica ao mesmo tempo instigante e mal conhecida”. Agora, com as recentes descobertas sobre sua vida em Boston, o historiador diz que ele ganha nova dimensão.
“Mundrucu entra para a galeria de personagens históricos equivalente, por exemplo, ao marinheiro João Cândido, da Revolta da Chibata, ou ao jangadeiro Francisco Nascimento, o Dragão do Mar, ou ao jornalista Luiz Gama”, diz, citando renomados negros brasileiros conhecidos por sua atuação pelo fim da opressão racial.
“São os heróis da plebe, que lutavam contra o preconceito racial e pela justiça social. Então, eu acho que Mundrucu finalmente está sendo reconhecido numa posição que sempre foi a dele”, reforça.
Especialista em escravidão e abolição no Brasil e Estados Unidos, a professora de história da Universidade Federal do Recôncavo da Bahia Luciana Brito considera importante o resgate da história de Mundrucu como exemplo de como os negros não aceitavam passivamente uma posição de “subalternidade”.
Ela critica a narrativa histórica predominante no Brasil por colocar os abolicionistas brancos como protagonistas da luta contra a escravidão, quando havia muitas lideranças negras lutando contra o regime.
“Na nossa formação escolar e de senso comum sobre as pessoas escravizadas, há uma fantasia da conformidade negra, dessa vontade de servir. A realidade nos mostra, através da história, que não era bem assim”, afirma.
Para a professora, a história de Mundrucu nos Estados Unidos não deve ser lida como evidência de que a opressão racial lá era pior que aqui.
Na sua leitura, o Brasil não adotou um sistema explícito de segregação como o americano — que chegou a contar com leis de separação racial em vários Estados — porque tinha um número muito maior de negros livres aqui.
De acordo com o projeto The Trans-Atlantic Slave Trade Database, um esforço internacional de catalogação de dados sobre o tráfico negreiro, 389 mil escravizados desembarcaram nos EUA em navios vindos da África, menos de 10% do total levado ao Brasil (4,9 milhões).
“No Brasil, desde sempre se pôde comprar alforria. Então, no século 19 havia uma vasta população de negros libertos. Seria muito perigoso para as elites brasileiras implementar o mesmo regime de segregação que existia nos Estados Unidos, onde os negros eram uma minoria, como são até hoje. Imagine o que é negar a cidadania para uma parcela da população enorme”, ressalta.
Segundo Brito, o grupo dos negros livres, tendo acesso a direitos no Brasil, acabava funcionando como uma “barreira de contenção” contra a rebelião racial. “Nas duas sociedades, o ideal era ser branco, mas através de estratégias distintas”, reforça.
Para Lloyd Belton, que pesquisa também a atuação de outros imigrantes negros latino-americanos nos EUA, é preciso valorizar a contribuição deles para a história americana, ainda mais considerando o aumento do preconceito contra os latinos durante o governo de Donald Trump (2017-2021)
“A história do Mundrucu mostra como bem conectadas as Américas eram naquele tempo. O Brasil era conectado com a Venezuela, a Venezuela era conectada com o Haiti, o Haiti com os EUA. Esses ativistas negros eram uma população muito móvel. Podiam viajar, falar diferentes línguas”, nota Belton.
“E ele não era o único. Havia outros imigrantes negros da América do Sul, do Caribe, que estavam em Boston, em Nova York, ou na Filadélfia, e eles estavam envolvidos nessas comunidades ativistas que eram muito cosmopolitas”, diz.
Nas duas décadas finais de sua vida em Boston, o brasileiro manteve-se atuante contra a escravidão e na luta pelos direitos civis da população negra. Um das suas bandeiras foi o fim da segregação das crianças em escolas exclusivas para brancos e negros.
Mundrucu morreu em 1863, depois do presidente Abraham Lincoln assinar o Ato de Emancipação em janeiro daquele ano, determinando que os escravos dos Estados sulistas rebeldes eram livres e podiam lutar na guerra civil entre o Norte e o Sul.
Segundo Belton, Mundrucu celebrou esse anúncio ao lado de Frederick Douglass, em um encontro da Union Progressive Association, um grupo abolicionista predominantemente negro do qual o brasileiro foi vice-presidente.
“Em 1863, Mundrucu e sua esposa eram muito respeitados por seus colegas bostonianos, negros e brancos. Ambos foram homenageados em seus respectivos obituários, nos quais foram lembrados como generosos, de espírito público e excepcionalmente viajados”, ressalta Belton em outro artigo sobre a vida do brasileiro.
O sobrenome Mundrucu não parece ter sobrevivido nos Estados Unidos porque seus dois filhos homens morreram sem deixar descendentes. Uma das filhas do casal, Marie H. Mundrucu se casou com Thomas C. Scottron, integrante de uma influente família negra abolicionista.
Belton conseguiu localizar um dos descendentes desse casamento, Mary Linda Scottron-Savage, que aos 80 anos vive em Phoenix, Arizona. Assistente social aposentada, ela diz que é “fascinante” ser tetraneta do casal Mundrucu e acredita que o exemplo deles passou de geração em geração na família.
“O preconceito continua existindo nos Estados Unidos. Para mim, porém, cada pessoa é um indivíduo e eu cuido delas como pessoas. Isso é provavelmente algo que minha mãe e meu pai incutiram em mim. Então, eu aprecio isso sobre Mundrucu”, disse à BBC.
Por BBC*