(*) Nelson Valente
O termo Polícia não é somente do ponto de vista social e político. Hoje se entende a palavra Polícia como todo um conjunto de meio e funções ligadas a manutenção da ordem, constituída pelo Estado.
Vejamos a definição da Polícia de acordo com alguns autores e códigos em Estados:
Astolfo de Resende: “A Polícia é a manifestação viva do poder público e da autoridade do Estado e um aparelho protetor da liberdade”.
Otto Mayer: “Polícia é a atividade do Estado que tem por fim defender por meio de poder de autoridade, boa marcha de causa pública contra as perturbações ocasionada pelas existências individuais”.
Nelson Valente: “Polícia é um ramo da administração pública, encarregada de manter a ordem e a segurança pública, no interesse do indivíduo e do Estado, pela vigilância e repressão ao crime”.
“As armas são instrumentos de mau augúrio. Quando não se tem outra alternativa que não utilizá-las, é melhor fazê-lo sem prazer.”
Sun Pin, séc. XIV a.C.
Lendo e relendo a tese de doutorado: “DIMENSÕES DA AÇÃO POLICIAL EM UMA TROCA DE TIROS: Um estudo psicossociológico da decisão pelo uso da força letal” de autoria WILQUERSON FELIZARDO SANDES e como ex-policial Militar da extinta Força Pública do Estado de São Paulo (atual Polícia Militar), resolvi rever a decisão em acionar o gatilho.
Os policiais, quando se deslocam para uma ocorrência, preveem a possibilidade de algo perigoso acontecer, logo ocorre um cálculo de risco possível. Tal caracterização é compartilhada pelos policiais ao perceberem uma arma de fogo ou um disparo por parte do oponente do policial. Não resta muito tempo para a tomada de decisão, tudo ocorre em fração de segundos entre a visualização do risco e a decisão em acionar o gatilho.
Os pensamentos dos policiais no momento da ação foram associados à necessidade de neutralizar o perigo, o medo de morrer, o risco de errar na ação, lembranças dos familiares, colegas ao lado, lembranças de casos recentes envolvendo outros policiais mortos em confrontos.
O pensamento racional é o tipo por meio do qual se escolhe fazer quando o indivíduo não está sob uma ameaça imediata e em um estado de baixa excitação. Sob essa condição, pode-se ter tempo para pensar nas coisas. O pensamento racional é consciente, deliberado, reflexivo, sem pressa, ele permite que se pense antes de agir conscientemente, examinando todas as provas para chegar a uma conclusão lógica baseada em uma análise cuidadosa. Seus padrões de pensamento seguem um passo a passo do processo de raciocínio dedutivo que se possa facilmente explicar aos outros.
Portanto, a decisão do tiro ocorre por um processo racional, mesmo na instantaneidade. O automatismo descrito pelos policiais se fundamenta apenas na execução dos gestos, técnicas e movimentos, mas a decisão é cognitiva. Existe um cálculo de ganhos e perdas, previsões ocorrem no caminho do evento de risco. O acionar do gatilho é um ato muscular comandando por uma lógica racional.
Em condições de ameaça, o pensamento será automático, relâmpago, rápido, orientado para a ação, e muito mais eficiente, mas não necessariamente mais preciso do que o pensamento racional. Ocorre o risco de se tomar decisões precipitadas.
Os pensamentos dos policiais no momento da ação foram associados à necessidade de neutralizar o perigo, o medo de morrer, o risco de errar na ação, lembranças dos familiares, colegas ao lado, lembranças de casos recentes envolvendo outros policiais mortos em confrontos.
O confronto armado acontece muitas vezes de forma repentina e inesperada. Não há tempo suficiente para o pensamento racional, não se pode contar com ele. Em vez disso, muda-se para o pensamento vivencial com base em instintos, e as respostas rápidas para manter o indivíduo vivo.
Um exemplo de policiais que optaram por não atirar também demonstra a racionalidade mesmo na instantaneidade da decisão, como foi o caso de dois policiais que faziam ronda pela cidade no período noturno, quando foram abordados por um grupo composto por cinco integrantes encapuzados e com armas curtas e fuzis dizendo aos policiais: “perdeu! perdeu! perdeu!”. Um policial ficou estático, o outro apontou a arma e abaixou-a em seguida, ambos decidiram não atirar, foram rendidos, mas continuaram vivos, porém sentiram-se moralmente abatidos com a situação, mesmo com a confirmação de que a decisão tomada foi a melhor naquela situação.
Entendemos que os policiais reagem instantaneamente, mas com racionalidade, pois a execução, por mais automática que seja, recebeu alguma previsão por parte do policial, pois ele sabe que, em algum momento profissional, a arma poderá ser empregada contra outra pessoa que tente reagir de forma potencialmente letal. O automatismo está relacionado ao “como usar” ou “o que fazer”, a exemplo do disparo realizado ou busca de um abrigo. O “quando usar” é uma atividade de conteúdo racional que depende de uma decisão baseada em um conjunto de informações suficientes ou não, e que deverão ser analisadas na instantaneidade da ação. O “sinal verde” da decisão pelo disparo do policial é baseado na ameaça armada do oponente. Visualizar a arma ou receber o disparo é uma forma simplificada para a tomada de decisão. A decisão de não atirar também pode ser considerada racional em várias situações, tais como presença de reféns, local de grande fluxo de pessoas, emprego de força superior por parte dos oponentes.
Nem todos, porém, possuem a mesma “sorte”, às vezes o final é irreparável em todos os sentidos, seja com mortes ou sofrimentos. Envolvendo um policial mediano e responsável, um oponente armado e outras pessoas no entorno desarmadas, todos envolvidos numa situação de confronto hipotético.
No confronto, vários resultados são possíveis e previsíveis. No caso de um atirar no outro e ninguém se ferir, é possível que ocorra uma prisão do oponente por tentativa de homicídio e que depois surjam comentários internos e externos contra os policiais, “por não terem matado o bandido”. Caso o oponente, estando armado, seja ferido ou morto, o policial, em meio ao pânico, dará o suporte de socorro e depois preencherá um documento atestando a reação armada, preferencialmente assinado por testemunhas do evento, e dias depois responderá a um inquérito para apurar se a ação foi em legítima defesa no cumprimento do dever. No caso anterior, o policial será parabenizado internamente por sair vivo e ter “neutralizado a ameaça”, e externamente por ter retirado mais um “criminoso” de circulação. No geral, existe muita dessensibilização quando a morte é do oponente, esta tende a ser ignorada, seja pelo policial ou pela comunidade.
A figura de uma reação também é estereotipada em uma construção social, não apenas pelo policial em seu trabalho, mas na comunidade, iniciando na vida infantil com o lúdico, a brincadeira de “policial e bandido”, onde o que exerce o papel do policial sempre atira no bandido. Logo, para o policial, decidir sobre a atitude do risco é uma tarefa com “meio caminho andado”. A decisão remota do policial exige apenas o sinal visualizado em uma arma nas mãos do suspeito, que representa uma ameaça incerta.
Policiais em um confronto armado:
a) Diminuição de som: não se ouvem alguns sons ou os sons tinham uma distância incomum, com qualidade abafada. Isto se aplica aos sons que normalmente se iriam ouvir, como tiros, gritos, sirenes nas proximidades, etc.;
b) Efeito de “visão do túnel”: a visão tornou-se intensamente focada na ameaça, com baixa visão periférica;
c) Efeito “piloto automático”: a resposta automática à ameaça percebida, com pouco ou nenhum pensamento consciente de suas ações;
d) Intensa acuidade visual: podem-se ver alguns detalhes ou ações com clareza;
e) Movimento lento do tempo: acontecimentos em câmera lenta e sensação de tempo maior do que o real;
f) Perda de memória sobre partes do evento: após o evento, havia partes que não conseguia lembrar;
g) Perda de memória de algumas de suas ações: após o evento, não conseguia se lembrar de algumas de suas próprias ações;
h) Dissociação: ocorreram momentos em que se tinha um estranho senso de desapego, como se o evento fosse um sonho, ou como se estivesse olhando para si mesmo do exterior;
i) Pensamentos intrusivos perturbadores: ocorriam alguns pensamentos não relevantes diretamente para a situação tática imediata, como pensar sobre seus entes queridos, planos futuros, etc.;
j) Distorção de memória: viu, ouviu ou experimentou algo durante o evento que mais tarde se descobriu que não tinha acontecido;
k) Sons se intensificaram: alguns sons pareciam muito mais intensos que o normal;
l) Movimento rápido do tempo: eventos pareciam estar acontecendo muito mais rápido que o normal;
m) Paralisia temporária: houve um tempo breve em que a pessoa se sentiu paralisada.
No caso de o policial ser ferido gravemente, talvez seja homenageado por ato de bravura ou criticado pela falta de cautela na abordagem. No caso de um policial morto, este receberá da instituição honras fúnebres pelo sacrifício da própria vida e tudo continuará como antes. Já na hipótese do policial que falha e acerta o oponente que não oferecia risco, ou atinge uma vítima ou terceiros, será moralmente linchado pela mídia pelo despreparo, abandonado pela instituição e terá que constituir e custear advogados para defendê-lo nos campos judicial e administrativo, o que poderá resultar em demissão e/ou prisão. Além disso, existe o estresse pós-traumático de um evento de risco, que opera diretamente no estado psíquico do policial, pois o ato de matar alguém em nome do estado, mesmo que justificado, ainda é um ato repugnante na sociedade. Os policiais sempre são assediados pela curiosidade de conhecidos ou amigos com a pergunta “você já matou alguém?”. Nesse caso, costuma prevalecer o silêncio ou tom de mistério na resposta, mas geralmente alguns respondem parcialmente, dizendo “eu só puxo o gatilho”, indicando uma separação simbólica entre o papel do indivíduo e o papel do agente policial.
No modelo de sociedade e nos seus diversos significados sociais, muitos policiais são classificados como corruptos ou violentos, mas, na grande maioria, são pessoas de conduta devidamente regulada pelos padrões morais vigentes e que se preocupam em oferecer um serviço de qualidade, mas que, uma vez ou outra, deverão tomar decisões difíceis de vida ou morte em curta fração de tempo.
Os policiais sempre são assediados pela curiosidade de conhecidos ou amigos com a pergunta “você já matou alguém?”. Nesse caso, costuma prevalecer o silêncio ou tom de mistério na resposta, mas geralmente alguns respondem parcialmente, dizendo “eu só puxo o gatilho”, indicando uma separação simbólica entre o papel do indivíduo e o papel do agente policial.
*Nelson Valente é professor universitário, jornalista e escritor