Oficialmente, o país está de fronteiras fechadas para maioria dos demais, devido à pandemia. Mas agências de turismo já estão reservando excursões de vacinação para Moscou, aparentemente com o apoio tácito do Kremlin.
Duas viagens curtas de quatro dias a Moscou, com um dia de passeios turísticos e uma vacina Sputnik V é o que a agência de viagens norueguesa World Visitor está anunciando aos turistas ávidos por imunidade. Os preços dos pacotes de vacinação contra o coronavírus na Rússia custam de 1.400 a 3.500 dólares (de R$ 8 mil a R$ 20 mil), embora os clientes não sejam cobrados até receberem oficialmente um visto russo.
Como os Estados europeus enfrentam escassez de vacinas, a perspectiva de viagens de imunização pode ser atraente para muitos – mesmo que a vacina russa Sputnik V ainda não tenha sido aprovada para uso pela Agência Europeia de Medicamentos (EMA).
Nas últimas semanas, o ritmo lento da campanha de vacinação na Alemanha tem provocado indignação entre a população. Alguns alemães optaram então por buscar ajuda fora das fronteiras do país.
Os primeiros turistas alemães num desses pacotes da World Visitor devem chegar em Moscou para uma primeira dose da Sputnik V em 8 de abril, com uma viagem para a segunda injeção agendada para algumas semanas depois. A DW também conversou com representantes da EurAsian Travel, agência sediada na Itália que também está analisando a logística das excursões de vacinação.
Oficialmente, porém, as autoridades russas ainda não deram luz verde para o turismo da vacina. As fronteiras, aliás, ainda estão fechadas para os cidadãos da maioria dos países da UE, também para os alemães. “Até o momento, não há nenhum programa de vacinação de turistas na Rússia”, declarou o ministro da Saúde, Mikhail Murashko, em 22 de março, ressaltando que a vacina é apenas para residentes.
Na segunda-feira, o porta-voz do Kremlin, Dmitry Peskov, admitiu que havia pedidos para considerar “se estrangeiros deveriam ter a possibilidade de entrar para se vacinar” e disse que a questão de organizar a entrada de estrangeiros para a vacina será algo para o governo considerar. Porém ressalvou que, por enquanto, a “prioridade absoluta” são os cidadãos russos.
‘Russos e estrangeiros’
Nos bastidores, as autoridades russas parecem estar pressionando para permitir a visita de não cidadãos para uma vacina contra a Covid-19. A Frente Popular de Toda a Rússia, uma coalizão de organizações políticas públicas fundada e chefiada pelo presidente Vladimir Putin, tem se envolvido ativamente no planejamento das viagens de vacinação. O grupo forneceu até mesmo uma carta de apoio para as próximas viagens. O documento, ao qual a DW teve acesso, ajudaria a garantir os pedidos de visto.
De acordo com ele, a vacinação de “cidadãos russos e estrangeiros” é uma iniciativa do “hospital clínico central do Departamento Administrativo do Presidente da Federação Russa” e da Agência Médico-Biológica Federal, um instituto nacional de saúde pública.
A Frente Popular de Toda a Rússia também está apoiando tours de vacinação com a World Visitor para russos que vivem na Alemanha. Assim, os primeiros 40 cidadãos que chegarem na próxima semana terão que pagar somente pelo voo, sem gastar um centavo pela estada em hotel ou por quaisquer despesas médicas ou de transporte em Moscou e arredores. Não está claro quem cobre esses custos.
Em resposta a um pedido de comentário, Valery Groyukhanov, coordenador da Frente Popular de Toda a Rússia, confirmou que a organização está ajudando russos residentes na Alemanha a obterem as injeções: “A vacina não está disponível na Alemanha, por isso nossos voluntários estão preparados para facilitar a visita de cidadãos russos ao seu país de origem, a fim de obter a vacinação contra o coronavírus.”
Goryukhanov não respondeu diretamente às perguntas da DW sobre viagens de vacinação para estrangeiros. Até o momento da publicação deste artigo, o Ministério da Saúde da Rússia tampouco havia respondido aos questionamentos da DW sobre a base legal para viagens para estrangeiros.
Corrida para vacina
As viagens, obviamente, podem ser uma jogada de marketing da Rússia – se os turistas estrangeiros puderem de fato ir, apesar do fechamento das fronteiras. A primeira vacina da Rússia foi chamada de Sputnik V, em homenagem ao primeiro satélite do mundo. Trata-se de uma alusão à corrida espacial da Guerra Fria e uma indicação clara de que as autoridades russas veem a campanha de vacinação através de lentes geopolíticas.
A Sputnik V, uma das três vacinas russas, foi lançada às pressas em 2020, apesar de relatos de que a fase final dos testes não fora concluída. Putin afirma que o imunizante russo é “o melhor do mundo” e se gabou de que 55 países já o aprovaram. De acordo com um estudo publicado na conceituada revista científica The Lancet,a Sputnik V foi declarada 91,6% eficaz.
Albert Sigl, co-proprietário da World Visitor, disse à DW que os tours inaugurais terão muita cobertura da imprensa, com os viajantes sendo divididos em um “grupo de imprensa”, cercado de atenção da mídia, e outro que deseja ficar longe dos olhos do público.
Questões de ética
Elisabeth Straub, residente em Berlim, é uma das alemãs que planeja viajar a Moscou para a receber a injeção na segunda semana de abril.
“Numa pandemia, não se deve pensar muito politicamente. Em vez disso, devem pensar como vacinar todos o mais rápido possível, para conter a pandemia.” A redatora de 56 anos quer ser vacinada logo por ter que frequentemente trabalhar em escritórios abertos e se preocupar com a possibilidade de ficar doente.
Já Manfred L., de Mainz, não está totalmente em paz com seus planos de viagem. “É claro que não quero me tornar joguete do governo Putin”, mas a política “suja” que tem observado entre governos e dentro da indústria farmacêutica o convenceu a ir em frente com a ideia. “Não quero mais jogar este jogo. Agora sou eu quem importa.” E acrescenta: “Só estou com medo de que, se o coronavírus me pegar, ele me pegue de vez.”
O alemão de 63 anos disse estar enfrentando críticas de amigos e familiares e que não queria que seu nome fosse publicado por medo de uma reação pública – inclusive por pagar para ser vacinado antes de chegar sua vez na Alemanha.
Salvação do setor?
Os interesses econômicos parecem ser um fator crucial na oferta dos pacotes de vacinação. Eles poderiam potencialmente salvar o setor de turismo da Rússia, que perdeu cerca de 500 bilhões de rublos (R$ 37 bilhões) com a ausência de turistas estrangeiros em 2020, de acordo com o chefe da agência federal russa de turismo.
O mesmo vale para as agências fora da Rússia: “Nós, como operadores de turismo, não temos permissão para fazer viagens há mais de um ano”, queixa-se Sigl, da World Visitor. “Não tenho motivação política nenhuma aqui. Éapenas um modelo de negócio que apareceu.” Até agora, mais de 700 alemães já se inscreveram para uma excursão da Sputnik V com a World Visitor. Sigl diz contar com garantias firmes de seus parceiros russos de que o turismo de vacinação será possível.
O empresário também está em contato com a companhia aérea russa Aeroflot, com quem teria reservado 650 assentos – antes da abertura das fronteiras. Por sua vez a Aeroflot disse à DW que “não pode confirmar esta informação”, acrescentando que “não temos dados sobre a organização de roteiros de vacinação para cidadãos estrangeiros”.
Segundo Sigl, porém as negações públicas das autoridades russas não significam nada. “Não podemos confiar em nenhum dos nossos concorrentes agora. Oficialmente, todos dirão que não estão fazendo isso.”
Porém o interesse econômico em fazer o turismo de vacinação decolar é enorme: “Este programa permitiria à Aeroflot colocar todos os seus aviões de volta nos ares”, afirma Sigl. (G1)