*Frutuoso Chaves
Carnaval de 1958. A chuva caía sem parar, manhã de domingo, no coração da zona canavieira. Cada pingo, um pote d´água, no dizer de Júlio, o pinguço mais famoso da cidade. O Paraíba havia engordado já a ponto de lamber os quintais.
Orações e hinos, na Igreja Batista. Na Católica, então sob o comando do Padre Gomes, muitas donas de casa, filhos pequenos do lado, acompanhavam o recital em latim com um sentido na missa e outro na rua. Se água barrenta chegasse à esquina do Grupo Escolar seria sinal de inundação da rua principal pelo rio. O Padre, então, que desculpasse, mas teria chegado a hora de subir a ladeira da Estrada Nova em busca das casinhas de palha habitadas pela maior parte das empregadas domésticas. “Se a chuva engrossar mais, corra lá para casa, madrinha”, minha mãe ouviu isso de Maria, a afilhada de fogueira.
Poucas vozes masculinas engrossavam o coro católico, àquela hora. E eram as de sempre, fossem os domingos de chuva ou sol, com ou sem folia. O farmacêutico, o dono da loja de tecidos e o promotor de justiça lá estavam nos primeiros bancos, benditos entre as mulheres.
A minha e outras avós tinham explicação para aquele dilúvio: castigo divino. Punição da raça humana pela conivência com aquelas marchinhas indecorosas, pecaminosas. “Só não quero que me falte a danada da cachaça”, cantavam Júlio e outros bêbedos, todos dispostos a trocar arroz, feijão, pão, manteiga e amor pela branquinha.
A bem da verdade, por qualquer aguardente, mesmo as de qualidade duvidosa. Algumas, cruz credo, tinham nomes de santos e artes do diabo. Que o digam São Paulo e Santo Amaro, ambos impressos nos rótulos das duas piores canas das redondezas, daquelas que mataram o guarda. Matariam, ainda, com mais algum tempo, Júlio e muitos dos seus.
E lá vinha um bloco de sujos (de corpos e espíritos) à frente de um cortejo formado por dois pistons, um trombone de vara, um saxofone, um bombo e um tarol, tão logo o sacristão fechou a Igreja. Ali, todos entoavam, ao limite das goelas, o maior, o mais indesculpável, o mais deplorável dos deboches: “As águas vão rolar. Garrafa cheia eu não quero ver sobrar”. E tome chuva.
Vó Amélia caprichou na rabissaca e ampliou este gesto de desprezo batendo a porta com barulho quase tão alto quanto o da pancada do bombo. A pobrezinha obteve, em resposta, o riso de algumas mocinhas. Indignada, trancou-se no quarto, onde tinha, num pequeno oratório, os santos da sua devoção. Não duvido, até hoje, de que seus clamores resultaram na interrupção da chuva e na volta das águas ao leito do Paraíba de tantos e tantos carnavais.
É desta velhinha que lembro, neste domingo de pandemia, com seus blocos recolhidos. E era dela que eu também lembrava – não muito, confesso – na folia de rua e nos bailes de salão da minha mocidade com suas fantasias, seus confetes, suas serpentinas e suas marchinhas.
Como eram inocentes, se comparadas a isso tudo que depois nos veio. Muitas, eternizadas, ainda tocam no rádio, mas já sem a ressonância dos tempos idos. Meus últimos passos de frevo, bem e às vezes mal acompanhados, foram dados, minha querida, quando as meninas do Tchan ainda não sentavam na boquinha da garrafa. Pelo tempo que isso faz, acho que estou, agora, perdoado. Não é não? Ah, e como dizia o Padre Gomes, “ora pro nobis”.
*Frutuoso Chaves é Jornalista profissional com passagens pelos jornais paraibanos A União (Redator e Chefe de Reportagem), Correio (Redator e Editor de Economia), Jornal da Paraíba (Editorialista), O Norte (Editor Geral), O Globo do Rio de Janeiro e Jornal do Commercio do Recife (correspondente na Paraíba, em ambos os casos). Também pelas Revistas A Carta (editada em João Pessoa) e Algomais (no Recife).