REGIS FERNANDES DE OLIVEIRA*
Inúmeros autores falam em proibição ao retrocesso, como se isso fosse algo novo no mundo jurídico. Mas, sem dúvida que a discussão chegou agora. Desde o homem selvagem até o homem civilizado ocorreram avanços inegáveis na sociedade. Ninguém mais pretende o retorno à barbárie.
É certo que Rousseau foi quem entendeu que o desenvolvimento da ciência e das artes leva ao retrocesso. Firmou a tese de que as grandes civilizações decaem sob o peso de seus avanços científicos e artísticos (Jean-Jacques Rousseau, “Discours sur les sciences et les arts”, GF. Flammarion, 1071, Paris, pág. 34). Segundo Robert Wokler (“Rosseau”, ed. L & M Pocket, Porto Alegre, 2012, pág. 37) o discurso de Rousseau “traz a primeira grande proposição de filosofia da história – de que nosso aparente avanço cultural e social tem levado apenas à nossa real degradação moral&rdquo ;.
O grande autor francês assenta seu raciocínio em três teses: a) a humanidade decaiu da inocência de seu estágio primordial, b) a arte e a ciência originária são moralmente superiores às nações refinadas e c) as grandes civilizações entraram em decadência após o avanço cultural.
É curiosa a tese de Rousseau. Dela não compartilhamos, embora não se possa de todo afastar suas afirmativas.
Em verdade, a humanidade caminhou. Grandes descobertas científicas se fizeram. A compreensão do mundo é outra. O tempo de vida aumentou graças a novas invenções. O conhecimento agigantou-se. A vida de boa parte das pessoas passou a ser mais confortável.
Tudo isso é verdade. Mas, de outro lado, há que se ponderar que a criação do Estado não levou igualdade a todos. O mesmo autor, em outro texto (“Discours sur l’origine, et les fondements de l’inegalité parmi les hommes”, GF Flammarion, 1971) afirma que reconhece dois tipos de desigualdades: a primeira decorrente de causas naturais e a segunda, que rotula moral ou política, porque depende de um tipo de convenção “et que’elle est établie ou Du moins autorisée par le consentement des hommes” (ob. Cit., pág. 167).
Pode-se dizer, pois, que o progresso não diminui o homem, mas levou a se estabelecer, entre eles, uma terrível desigualdade.
Assentada tal premissa, os autores debruçam-se sobre este problema e tentam estabelecer limites ao Estado e à sociedade para que todos possam viver em um clima de segurança e igualdade. Declarados ficaram os direitos em Constituições escritas ou não por todo o mundo. Houve ondas de reconhecimento de gerações de direitos. Os burgueses, os sociais e os difusos. Todos garantem um mínimo de segurança para que todos possam conviver de forma pacífica.
Nas modernas democracias constitucionais com texto escrito, há um rol de direitos e garantias. São limitações ao exercício do poder do Estado. Já se disse que a Constituição em sentido material deveria conter apenas a estrutura do poder do Estado e os meios de os indivíduos dele se defenderem. Este o conflito eterno.
As sociedades avançaram no estabelecimento de suas garantias. Bobbio afirmou que a era dos direitos já era passada. Agora, restava garantir sua eficácia.
Um dos problemas modernos que se põe é sobre a proibição ao retrocesso. A matéria tem sido debatida longamente em seminários, na doutrina, chegando a ser colocada à decisão dos tribunais.
O que isso significa? Tendo a sociedade chegado ao ponto de estruturar os direitos e estabelecer formas e instrumentos para sua garantia não pode o Estado retirá-los ou diminuí-los em seu exercício. Como a sociedade evolui de forma a propiciar ao ser humano uma determinada situação de garantias e de consagração de direitos inatos do ser humano, não pode o Estado voltar a situação menor.
Como será que se pode ponderar adequadamente para dar contornos factíveis a tal proibição de retrocesso.
Os direitos existem e estão consagrados em normas constitucionais. Este é o pacto estabelecido entre os homens. Será que os mesmos homens não podem alterá-los? Como ficam gerações futuras se os recursos que forem despendidos com a geração atual forem a elas prejudiciais?
Sem dúvida alguma os direitos individuais estabelecidos no art. 5º da Constituição Federal constituem cláusula pétrea. Não podem, por conseguinte, ser abolidos, ainda que por emenda constitucional. Mas, daí, gerar a afirmativa de que os recursos determinados para sua garantia também sejam cláusula pétrea vai um longo caminho.
Não se desconhece nem se infirma que os direitos consagrados devam ser protegidos? Mas, são? Todos os direitos e deveres individuais e coletivos e respectivas garantias (LXXVIII, ou seja, 78 dispositivos) são efetivamente assegurados? Isso sem falar em outros direitos (sociais e difusos) esparsos ao longo da Constituição.
Estamos de acordo num sentido: os recursos públicos arrecadados da população e empresas se destinam a garanti-los. Mas, a partir daí dizer que tendo o legislador assegurado determinados recursos a um deles não possa diminuir seu montante ou alterá-los vai distância grande.
É que os recursos são finitos e as necessidades inexauríveis. E a cada dia que passa, a sociedade se desenvolve, surgindo novas necessidades individuais e coletivas o que obriga à arrecadação de mais recursos, o que onera a sociedade como um todo.
O legislador e o administrador realizam, por vezes, escolhas trágicas. O cobertor financeiro das receitas é curto. Deve e tem que escolher. Nem sempre o faz de forma adequada.
Pior que isso, o agente público age com seus sentimentos e não exclusivamente com a razão. Os sentimentos envolvem-no de toda forma. A ira, o amor, o ódio, a compaixão e todos as demais emoções afloram e tomam conta de seu agir. Por vezes está irritado com algum setor da sociedade e busca prejudicá-lo. Em outras, quer ajudar alguns segmentos e não consegue. Sofre obstrução política. Tudo surge num crescendo de confronto entre emoção e razão.
Daí porque não se pode afirmar que não haverá, em qualquer hipótese, retrocesso nas conquistas sociais. Isso decorre até da ideologia encampada pelo governante. Não significados de direita e esquerda. Mas, de decisões que possam ferir o adversário o que redunda em prejuízo para a sociedade.
O que significa exatamente a proibição de retrocesso. Por primeiro, diga-se que é não perder de vistas as conquistas já realizadas no campo social e individual em garantia das liberdades públicas. Mas, por vezes, segurança confronta com liberdade. Qual o bem jurídico melhor tutelado pelo ordenamento normativo? O executor da lei terá que optar.
Hipótese típica é da vacinação obrigatória. Pode alguém se recusar a tomá-la? Todos devem sujeitar-se à vacinação. E se alguém se recusa? Pode ser constrangido a ser vacinado, inclusive com uso de força física? Qual o limite que está traçado entre a saúde pública e a liberdade individual? Viram como há um estreito limite a separar tais direitos?
Chegará uma oportunidade em que se alguém não se imuniza pode transmitir a moléstia a outros. Não os que já estejam imunizados, mas a terceiros que ainda não receberam a vacina. Pode alguém recusar-se por professar determinado culto. Na transfusão de sangue de determinado setor religioso houve recusa de parentes em aceitar a imunização. Confrontos difíceis de resolver.
O que isso significa? É avanço a imunização ou é retrocesso ao invadir a liberdade alheia individual ou de fé religiosa?
Há muito de ideologia na apreciação do problema. Muitos dirão que todos são obrigados pelo só fato de viverem em sociedades; outros dirão que não, porque há que se respeitar a individualidade.
Pior ainda é a interpretação do que são as chamadas cláusulas pétreas e como interpretar os direitos individuais inseridos no art. 5º da Constituição Federal. Quando colidem, temos que criar regras interpretativas. Autores falam em maior eficácia do conteúdo de dada norma. Não há meios de subtração de determinada norma quando o problema se coloca no nível dos princípios asseguradores dos direitos.
Observa-se que se impõe observar o momento histórico em que se vive. Segundo, impõe-se analisar o indivíduo na situação, como diz Heideggar. Terceiro, quais os valores vigorantes naquele instante? É crepitante analisar a ebulição política vigorante no país. As forças políticas estão equilibradas? O que prevalece? Qual o discurso que emotiva e emociona a população? Está o povo acomodado e aceitando as ordens governamentais?
Tudo isso é importante para se saber se haverá ou não retrocesso em determinadas situações. Não é questão, pois, de declaração de direitos, mas de garantir-se sua execução. Como disse Bobbio, os direitos estão dados; resta garanti-los.
Como garantir, de forma absoluta, que não haverá retrocesso?