Matthew ainda se lembra de quando sua vida mudou: a noite em que sua mãe e seu padrasto cruzaram com ele rumo ao território controlado pelo grupo extremista.
Por BBC
Matthew ainda se lembra do momento em que sua vida mudou: a noite em que sua mãe e seu padrasto cruzaram as fronteiras da Turquia com ele e alcançaram o território do autodenominado Estado Islâmico (EI) na Síria.
“Corremos por uma área muito escura, cheia de arames farpados… Não passava muita coisa pela minha cabeça, exceto, ‘eu preciso correr'”, diz ele, em entrevista à BBC e à emissora pública americana PBS.
Nascido nos Estados Unidos, Matthew foi levado para a Síria quando tinha oito anos. Sua mãe havia se casado com um marroquino, Moussa Elhassani, que se radicalizou e ingressou no Estado Islâmico, levando toda a família para viver na Síria, país que vive uma guerra civil.
O rosto do menino ficou conhecido mundialmente em 2017, aos dez anos, quando militantes do EI o usaram em um vídeo ameaçando o presidente americano, Donald Trump.
Agora com 13 anos, ele está de volta a seu país de origem e morando com seu pai, depois que os militares dos EUA o resgataram e o trouxeram para casa em 2018.
Matthew diz se sentir “aliviado”.
“O que aconteceu, aconteceu. O resto ficou para trás”, diz ele.
“Era tão pequeno que não entendia o que estava acontecendo”, acrescenta.
Jornada ao inferno
Foi em abril de 2015 que uma família aparentemente comum cruzou a fronteira da Turquia, da província de Sanliurfa para o território do EI.
Em Raqqa, a cidade reivindicada pelos combatentes islâmicos como sua capital, o padrasto de Matthew, Moussa Elhassani, foi enviado para treinamento militar e ali se tornou um franco-atirador.
Aos oito anos de idade, Matthew tentava entender seu novo lar.
“Quando estivemos em Raqqa pela primeira vez, ficamos na cidade. Era muito barulhenta com os tiros. De vez em quando, havia uma explosão, mas era longe. Então não tínhamos muito com que nos preocupar”, lembra.
No início de 2017, a mãe de Matthew, Samantha Sally, enviou um e-mail desesperado para uma irmã nos EUA. Ela pedia dinheiro para ajudar a família a sair dali.
E também enviou alguns vídeos extremamente perturbadores de Matthew. Em um deles, o padrasto Moussa Elhassani forçava o menino a montar um cinto suicida.
Matthew, que seguia as instruções, recriava como daria as boas-vindas aos soldados americanos que o resgatariam para então matá-los, detonando os explosivos.
Em outro vídeo, ele foi visto desmontando um AK-47 carregado, desafiado por seu padrasto a fazê-lo em menos de um minuto.
Pesadelo
Certa noite, enquanto a coalizão liderada pelos Estados Unidos intensificava seus ataques aéreos a Raqqa, uma bomba atingiu uma casa vizinha, que desabou no local onde Matthew vivia com sua família.
O menino foi milagrosamente salvo: ele conseguiu tatear entre os escombros e a poeira.
Pouco depois, em agosto de 2017, Raqqa estava em ruínas, mas o Estado Islâmico ainda tinha certeza de sua vitória.
Foi quando o grupo usou Matthew para filmar um vídeo de propaganda ameaçando Trump.
“Minha mensagem para Trump, o fantoche dos judeus: Alá nos prometeu a vitória e lhe prometeu a derrota”, disse o menino, recitando a mensagem que o forçaram a memorizar.
“Esta batalha não vai terminar em Raqqa ou Mosul. Vai acabar em suas terras … Então prepare-se, porque a luta está apenas começando”, acrescentou.
Anos depois, o menino lembra que seu padrasto o obrigou a gravar o vídeo e que o ameaçou durante as filmagens.
“Estava começando a perder o controle, como se tivesse com problemas mentais”, diz ele.
Logo depois, Elhassani foi morto em um suposto ataque com drone.
“Fiquei feliz porque não gostava dele, obviamente”, diz Matthew.
“Não acho que deveria ter ficado feliz porque uma pessoa morreu, mas fiquei. Estávamos todos chorando… de alegria.”
Resgate
Após a morte do padrasto, a mãe de Matthew, Samantha Sally, pagou a traficantes de pessoas para tirar ela e seus quatro filhos do território controlado pelo Estado Islâmico.
Matthew foi escondido dentro de um barril na parte de trás de um caminhão para passar pelos postos de controle.
Quando chegaram ao território controlado pelos curdos, foram presos em um campo de detenção. Foi lá no inverno de 2017 que a BBC começou a falar com Sally.
A mulher disse que seu marido a enganou e a convenceu a levar sua família para a Síria. Ela dizia não ter ideia do que ele estava planejando.
Uma vez em Raqqa, conta, ele se tornou violento.
A americana admitiu que, durante sua estada lá, o casal comprou duas adolescentes yazidis como escravas e que seu marido as estuprava regularmente.
Versão falsa
Ao retornar aos EUA, Sally disse que havia sido traída pelo marido. Embora o tivesse apoiado “em seus esforços estúpidos”, ela insistia que não era culpada por ele ingressar no EI.
No entanto, uma reportagem investigativa da BBC e da PBS descobriu evidências que contestavam essa história.
Um membro da família Elhassani disse que Moussa ficou obcecado pelo EI nos meses que antecederam a partida dos EUA e que o viu assistindo à propaganda do grupo, incluindo vídeos de execuções, na casa da família.
Uma amiga de Sally também se lembrou de uma conversa em que ela lhe disse que seu marido se sentiu chamado a entrar na “guerra santa”.
A reportagem investigativa também revelou que Sally fez uma série de viagens a Hong Kong nas semanas antes de sua família deixar os EUA e que ela depositou pelo menos US$ 30 mil em dinheiro e ouro em cofres.
Depois de quase 12 meses presa, Sally mudou sua versão e se declarou culpada de financiar o terrorismo como parte de um acordo judicial.
Evidências colhidas pelas autoridades mostraram depois que Sally ajudou a filmar os vídeos de seu filho com o cinto suicida e o AK-47.
De acordo com os promotores, nunca se saberá por que ela ajudou seu marido a ingressar no Estado Islâmico, embora sua defesa argumente que ela foi coagida pelo por ele.
Desde seu retorno aos Estados Unidos, Matthew recebeu apoio psicológico para ajudá-lo a lidar com o trauma de tudo o que lhe aconteceu.
Segundo os médicos, ele melhorou e está bem, hoje morando com o pai.