Maria José Rocha Lima*
Em 1979, o pesquisador e historiador Luiz Mott descobriu, no Arquivo Público do Piauí, carta da escrava Esperança Garcia.
Relata que, em carta de 6 de setembro de 1770, a escravizada denunciava os maus- tratos a si, às suas companheiras e aos seus filhos, bem como a separação do seu marido e impedimento de batizar os filhos.
Em reconhecimento da importância histórica do documento escrito por Esperança, atendendo às reivindicações do movimento negro no Piauí, a data de 6 de setembro foi oficializada como o Dia Estadual da Consciência Negra, em 1999.
Em setembro de 2017, 447 anos depois, através de solicitação da Comissão da Verdade sobre a Escravidão Negra do Piauí, Esperança Garcia foi reconhecida como a primeira advogada piauiense pela OAB/PI.
Na carta descoberta pelo historiador, Esperança Garcia revela consciência dos seus direitos, mostra o cenário escravagista no Piauí e trata de dinâmicas de resistência, que atravessam todos os labirintos do sistema escravagista. A carta, revelando aquilo que talvez fosse um grande segredo, redige uma petição endereçada ao governador da capitania de São José do Piauí. (MOTT, 2010, p.7)
“Eu sou uma escrava de V.S.a, administração de Capitão Antonio Vieira de Couto, casada. Desde que o Capitão lá foi administrar, que me tirou da Fazenda dos Algodões, aonde vivia com meu marido, para ser cozinheira de sua casa, onde nela passo tão mal. A primeira é que há grandes trovoadas de pancadas em um filho nem, sendo uma criança que lhe fez extrair sangue pela boca; em mim não poço explicar que sou um colchão de pancadas, tanto que caí uma vez do sobrado abaixo, peada, por misericórdia de Deus escapei. A segunda estou eu e mais minhas parceiras por confessar a três anos. E uma criança minha e duas mais por batizar. Pelo que peço a V.S. pelo amor de Deus e do seu valimento, ponha aos olhos em mim, ordenando ao Procurador que mande para a fazenda aonde ele me tirou para eu viver com meu marido e batizar minha filha. De V.Sa. sua escrava, Esperança Garcia” (MOTT, 2010)
“Trata-se do documento mais antigo de reivindicação de uma escrava a uma autoridade. Documento insólito! Primeiro por vir assinado por uma mulher, já que mulher escrever antigamente era uma raridade. As mulheres eram vítimas da estratégia de seus pais, mantê-las distante das letras, a fim de evitar que elas escrevessem bilhetinhos para os seus namorados. Segundo, por se tratar de uma petição escrita por uma mulher negra.” (Mott, 2010).
A narrativa de Esperança Garcia caracteriza-se pela impetuosidade e bravura. Esperança se vale de um recurso, de uma petição, um requerimento de direitos, se colocando como membro da sociedade política. Deve – se destacar que a escravizada convivia com outras estratégias de luta contra a escravidão, como a fuga para quilombos, os suicídios e os assassinatos. Ela apresenta uma incomum expressão de lutas contra a escravidão e pelos direitos humanos, possivelmente vista como intolerável aos que nasciam nas senzalas e só possível aos súditos do rei.
Sou grata ao amigo Paulo Sena, consultor legislativo da Câmara dos Deputados, por repercutir a descoberta do pesquisador Luiz Mott, mais um presente histórico para a luta contra o racismo e por igualdade de gênero, raça e classe no Brasil.
Obrigada, Luiz Mott, por mais essa fantástica descoberta, que faz ecoar a voz intrépida da escravizada, mas não escrava, Esperança Garcia!
*Maria José Rocha Lima mestre e doutoranda em educação. Foi deputada da Bahia de 1991 a 1999. É presidente da Casa da Educação Anísio Teixeira e Psicanalista e diretora da Associação Brasileira de Pesquisas e Estudos em Psicanálise – ABEPP.