Ricardo Westin*
O Rio de Janeiro entrou em pânico. Quando correu a notícia de que, da Baía de Guanabara, quatro navios de guerra apontavam seus canhões para a cidade, os cariocas fizeram as malas às pressas para fugir da morte. Na Estação Central do Brasil, os trens para longe da capital da República partiram lotados. Nos bondes com destino aos subúrbios, os passageiros viajaram espremidos, muitos pendurados no lado de fora.
O perigo era real. Numa amostra do estrago que eram capazes de provocar, os encouraçados fizeram disparos que mataram duas crianças no Morro do Castelo, no Centro, a poucos metros da Câmara dos Deputados.
O senador Ruy Barbosa (BA) contou aos colegas, num discurso no Senado, o horror de ter sido testemunha ocular do ataque naval:
— Foi com a minha filha chumbada ao leito, por uma enfermidade que não nos permite sequer movê-la na sua própria cama, que tive esta manhã de ver passar sobre a nossa casa, sob a forma de um projétil de guerra, a triste ameaça de ataque à nossa segurança e à nossa civilização.
Há 110 anos, explodia a Revolta da Chibata. Na noite de 22 de novembro de 1910, centenas de marujos se insurgiram e se apossaram dos quatro navios da Marinha, entre os quais os encouraçados Minas Gerais e São Paulo, as mais poderosas máquinas de guerra da época. Eles não tinham motivação política. A grande bandeira era o fim dos castigos corporais aplicados aos acusados de indisciplina. Dos castigos, o mais violento eram as chicotadas — da mesma forma que se fazia com os escravos na época da Colônia e do Império. Por causa das chibatadas, as deserções no mundo naval eram rotineiras.
Como o governo era surdo aos clamores, os marinheiros resolveram pressionar de uma forma mais drástica. Atacaram os comandantes dos navios, matando alguns deles, assumiram os timões e viraram os canhões para o Rio. Depois de fazer aqueles primeiros disparos, os marujos apresentaram um ultimato ao presidente da República, o marechal Hermes da Fonseca: se os castigos desumanos não fossem proibidos, a capital iria pelos ares.
Documentos históricos guardados no Arquivo do Senado, em Brasília, mostram que os senadores tiveram papel decisivo no desenrolar e no desfecho da Revolta da Chibata. Ruy Barbosa, depois de recuperar-se do susto inicial e inteirar-se da motivação dos rebeldes, mudou o tom dos discursos e se transformou no mais ardoroso apoiador dos marinheiros:
— Senhores, não há muitos anos, nas proximidades de Santos, na Fortaleza da Praia Grande, diversos soldados, submetidos ao castigo corporal, caíam fulminados pela sua agonia e pouco depois eram cadáveres. Tratou-se de uma sindicância, uma dessas providências aparentes com que se procura iludir a publicidade, mas o inquérito morreu ali mesmo, sem que esse crime tivesse punição. Ainda há poucos dias, uma senhora, filha de um almirante, perguntava a um marinheiro, cujas mãos estavam enroladas com chumaços de pano, que moléstia sofria. “Ah, minha senhora, se soubesse… Estas mãos receberam 60 dúzias de bolos.” É desse monturo de misérias sociais que fermentam as sublevações militares.
Os insurgentes também pediam reajuste do salário, melhora da qualidade da ração e alívio na carga de trabalho.
— Navios construídos para 900 homens de tripulação não podem ser guarnecidos, mantidos, asseados e conservados por 300 marinheiros — criticou Ruy no Senado.
Como pano de fundo da revolta de 1910, estava o que hoje é chamado de racismo estrutural. De acordo com números da época, até 90% dos marujos eram negros, isto é, filhos e netos de antigos escravos. A Lei Áurea fora assinada apenas 22 anos antes. A eles cabia o trabalho mais pesado dos navios militares, incluindo a limpeza e as caldeiras. Havendo gente de menos, ainda tinham que acumular funções.
Como a escravidão fora abolida sem que se garantisse aos negros indenização, terra, educação ou trabalho (a opção da lavoura pós-1888 foi por imigrantes europeus pobres), a imensa maioria deles teve que se contentar com os empregos que ninguém queria. A Marinha era um desses empregos.
A própria Constituição da época enxergava os negros como cidadãos de segunda classe. No capítulo referente à cidadania, a Carta de 1891 dizia que não tinham direito ao voto os mendigos, os analfabetos e os subalternos da Marinha e do Exército.
Ao mesmo tempo, o oficialato da Marinha, grupo responsável pelo comando das embarcações, era inteiramente branco. O grande desejo das famílias abastadas da Primeira República era que todo filho homem se tornasse médico, advogado, engenheiro ou almirante.
O fosso racial entre marujos negros e oficiais brancos era tão explícito que os jornais do Rio de Janeiro apelidaram o marinheiro João Cândido — aos 30 anos de idade, o cabeça do motim — de Almirante Negro. Eram duas palavras que não faziam sentido juntas. Para os jornais oposicionistas, simpáticos à Revolta da Chibata, o apelido era uma forma de mostrar que João Cândido tinha valor, pois era capaz comandar o gigantesco encouraçado Minas Gerais mesmo sem ter passado pela prestigiosa Escola Naval. Para os jornais governistas, críticos do motim, por sua vez, era uma maneira de ridicularizar o reles marinheiro negro que tinha o atrevimento de se portar como se fosse almirante.
Em meio à insurreição dos marujos, Ruy Barbosa, que era o líder dos oposicionistas no Senado, chegou a comparar a luta contra a chibata na Primeira República à luta contra a escravidão no Segundo Reinado:
— O homem do povo, preto ou mestiço, que veste a nobre camisa azul da nossa Marinha, filho ou descendente de antigos escravos, sabe que, para emancipá-los, uma revolução abalou a sociedade e um regime [a Monarquia] caiu. Esse homem do povo agora sente cair sobre as carnes a chibata aviltante, sente a indigna palmatória magoar-lhe as mãos. Todos os abusos têm, mais cedo ou mais tarde, sua expiação inevitável.
Até mesmo Pinheiro Machado (RS), o mais governista dos senadores, enxergou nos marinheiros alguma razão. Num pronunciamento, ele citou os salários de fome:
— Nunca compreendi como na República se tenha feito, com tanta liberalidade, aumentos de soldo todos os anos às classes armadas, aos oficiais, ora sob pretexto de equiparação, ora modificando-se a organização do quadro de generais, de modo que temos no país numerosos generais sem termos soldados. Nunca compreendi que, para atender às necessidades das Forças Armadas, fosse esse o processo republicano, abandonando-se o interesse das praças [militares subalternos]. Agora mesmo fez-se a reforma dos Correios, e os estafetas [carteiros] foram esquecidos. Os direitos dos que trabalham, dos que mourejam, dos humildes são esquecidos neste regime de igualdade.
O senador Alfredo Ellis (SP) concordou:
— São os deserdados da República oligarca.
Muito marujo negro certamente cresceu ouvindo de seus pais e avós histórias atrozes que eles próprios viveram nos tempos da escravidão. Em 1910, a marinhagem tinha consciência de que, mesmo com a Lei Áurea em vigor, as atrocidades permaneciam — porém com nova roupagem, adaptadas à era do trabalho livre.
Numa das mensagens ao presidente da República, os rebeldes liderados por João Cândido escreveram: “Pedimos a V. Exa. abolir a chibata e os demais bárbaros castigos pelo direito da nossa liberdade, a fim de que a Marinha brasileira seja uma Armada de cidadãos, e não uma fazenda de escravos que só têm dos seus senhores o direito de serem chicoteados.”
Em outra mensagem endereçada ao Palácio do Catete, citaram os republicanos que derrubaram a Monarquia em 1889 prometendo inclusão social: “Durante 20 anos, a República ainda não foi bastante para tratar-nos como cidadãos fardados em defesa da pátria. Mandamos esta honrada mensagem para que V. Exª. faça aos marinheiros brasileiros possuirmos os direitos sagrados que as leis da República nos facilitam”.
Na visão do historiador Álvaro Pereira do Nascimento, que é professor da Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro (UFRRJ) e autor do livro João Cândido, o Mestre-Sala dos Mares (Eduff), a Revolta da Chibata diz muito sobre o Brasil de hoje. Segundo ele, a insurreição de 1910 foi um sinal inequívoco de que o racismo continuou estruturando a sociedade brasileira mesmo depois da abolição da escravidão:
— O racismo estrutural é aquele que se mantém com o apoio do Estado, seja por meio de leis, seja por forças outras que não são visíveis. Não existia nenhum código dizendo que negros não podiam entrar na Escola Naval. Eles não entravam porque não tinham formação educacional. Quando tinham formação, não possuíam dinheiro para pagar o enxoval exigido pela Escola Naval. Ainda que conseguissem o enxoval, lá dentro existiam várias normas não escritas que os impediam de concluir o curso. A Marinha, mesmo sendo hoje uma instituição de 200 anos, só foi ter o primeiro almirante de carreira negro recentemente, na primeira década do século 21. Com os marujos nos porões dos navios e os almirantes nos camarotes, a Marinha apenas reproduziu à sua maneira o racismo que tem estado presente na sociedade o tempo todo.
O motivo, porém, de sua prisão agora, no alto mar, a bordo da corveta, era outro, muito outro: Bom Crioulo esmurrara desapiedadamente um segunda-classe. […]
Metido em ferros no porão, Bom Crioulo não deu palavra. Admiravelmente manso quando se achava em seu estado normal, longe de qualquer influência alcoólica, submeteu-se à vontade superior, esperando resignado o castigo. […]
A chibata não lhe fazia mossa; tinha costas de ferro para resistir como um Hércules ao pulso do guardião Agostinho. Já nem se lembrava do número das vezes que apanhara de chibata…
— Uma! — cantou a mesma voz. — Duas! Três!
Bom Crioulo tinha despido a camisa de algodão, e, nu da cintura para cima, […] nem sequer gemia, como se estivesse a receber o mais leve dos castigos.
Entretanto, já iam cinquenta chibatadas! Ninguém lhe ouvira um gemido, nem percebera uma contorção, um gesto qualquer de dor.
Viam-se unicamente naquele costão negro as marcas do junco, umas sobre as outras, entrecruzando-se como uma grande teia de aranha, roxas e latejantes, cortando a pele em todos os sentidos.
De repente, porém, Bom Crioulo teve um estremecimento e soergueu um braço: a chibata vibrara em cheio sobre os rins, empolgando o baixo-ventre. Fora um golpe medonho, arremessado com uma força extraordinária.
Por sua vez Agostinho estremeceu, mas estremeceu de gozo ao ver, afinal, triunfar a rijeza de seu pulso.
Marinheiros e oficiais, num silêncio concentrado, alongavam o olhar, cheios de interesse, a cada golpe.
— Cento e cinquenta!
Só então houve quem visse um ponto vermelho, uma gota rubra deslizar no espinhaço negro do marinheiro e logo este ponto vermelho se transformar numa fita de sangue. […]
— Basta! — impôs o comandante.
Estava terminado o castigo. Ia recomeçar a faina.
O impulso inicial do marechal Hermes da Fonseca foi partir com tudo para cima dos revoltosos. O presidente assumira o Palácio do Catete havia apenas uma semana e sabia dos riscos que corria ao começar o mandato fazendo concessões e enfraquecendo o próprio governo. Ao mesmo tempo, sendo ele próprio um militar de carreira, não tolerava o desrespeito à hierarquia.
Quem o conteve foi Pinheiro Machado. A imprensa oposicionista afirmava que o presidente, sem muita experiência no mundo do poder (a não ser um breve período como ministro da Guerra), não passava de um fantoche nas mãos do senador gaúcho, o político mais influente da época. Pinheiro Machado chamou-lhe a atenção para o fato de que, entre os quatro navios rebelados, estavam os poderosos encouraçados Minas Gerais e São Paulo, que, recém-comprados, haviam custado uma fortuna. Ou seja, as corvetas que haviam se mantido fiéis ao governo não tinham poder de fogo para enfrentá-los. Ainda que pudessem ser afundados, o governo estava endividado e não podia se dar ao luxo de queimar dinheiro público.
O marechal Hermes cedeu às ponderações, mas se recusou a lidar diretamente com os revoltosos. As negociações foram conduzidas por senadores e deputados. Influenciados por Ruy Barbosa, os parlamentares entenderam que, para que os marujos enfim aceitassem entregar as armas, o governo precisava conceder-lhes a anistia, de modo que não fossem punidos pelos crimes cometidos ao tomar as embarcações e matar os comandantes. Contrariando o presidente da República, o senador Severino Vieira (BA) apresentou ao Congresso Nacional um projeto de lei prevendo a anistia.
— Voto a favor do projeto porque no movimento atual só enxergo uma greve de operários da nação reclamando melhoria das condições de existência material e moral — disse o senador João Luiz Alves (ES).
— A anistia correta é regular, é jurídica, desde que ela oferece aos insurgentes uma medida para pôr termos a um conflito insolúvel — afirmou Ruy Barbosa, tentando convencer o governo de que não se tratava de uma humilhação. — Nas guerras internacionais, os Bonapartes capitulam à frente de dezenas e centenas de milhares de homens sem que se possa atribuir à covardia ou ao medo a inspiração que os leva a erguer a bandeira da paz e se submeter às exigências do inimigo. Nesse caso, aceitar as condições é ceder à razão humana, sem desonra nem quebra do decoro da autoridade.
A anistia foi aprovada por unanimidade. Sem alternativa, o presidente teve que sancioná-la. Os 2.300 marujos amotinados se entregaram em 26 de novembro. Em troca, eles conseguiram também a tão sonhada abolição dos castigos corporais. Satisfeitos, desembarcaram posando para os fotógrafos e dando entrevista para os repórteres dos jornais. Depois de quatro dias de terror, a Revolta da Chibata chegava ao fim e o Rio de Janeiro finalmente respirava aliviado.
Da tribuna do Senado, Ruy Barbosa continuou com o apoio:
— Li com admiração como esses homens mostravam com orgulho os seus navios, dizendo: “Senhores, isto é uma revolta honesta!”. Eles tinham lançado ao mar toda a aguardente existente a bordo para não se embriagarem, tinham feito guardar com sentinelas as caixas onde se achavam depositados os valores, tinham mandado atalaiar com sentinelas os camarotes dos oficiais para que não fossem violados, tinham guardado na organização do movimento um sigilo prodigioso entre os costumes brasileiros, tinham sido fieis à sua ideia, tinham sido leais uns com os outros, desinteressados na luta. E, em vez de se entregarem aos instintos tão naturais em homens da sua condição, servindo-se dos meios destruidores de que dispunham contra a cidade, fizeram concessões e estabeleceram a luta como se fossem forças regulares contra inimigos regularmente constituídos. Gente dessa ordem não se despreza. Lamentam-se os desvios, mas reconhece-se o valor humano que ela representa.
A paz, contudo, duraria pouco. Dois dias depois do armistício, o marechal Hermes, que não estava disposto a esquecer a audácia da marujada, baixou uma norma autorizando a Marinha a demitir sumariamente todos os homens tidos como indisciplinados. Os marinheiros compreenderam que a anistia fora de mentira.
Aparentemente, o que o presidente desejava era forçar uma nova rebelião e dessa vez sufocá-la de forma exemplar. Para evitar o mesmo susto da Revolta da Chibata, mandou retirar a munição de todos os navios de guerra. A previsão se cumpriu. Em 9 de dezembro, inconformados com a anistia enganosa, alguns marinheiros que não haviam participado da Revolta da Chibata se rebelaram na Ilha das Cobras, onde havia instalações da Marinha. Sem perder tempo e ignorando a bandeira branca logo levantada pelos amotinados, as forças do governo arrasaram a pequena ilha.
O marechal Hermes usou essa segunda revolta para conseguir do Congresso Nacional a aprovação do estado de sítio, em que certos direitos constitucionais ficam suspensos e o governo ganha mais poderes para repelir as investidas dos inimigos. O estado de sítio só não foi aprovado por unanimidade porque Ruy Barbosa advertiu que mais arbitrariedades certamente seriam cometidas e votou contra.
Nos dias seguintes, sem processo judicial ou defesa, centenas de marujos foram perseguidos e presos. Alguns morreram em masmorras militares, asfixiados por nuvens de cal virgem lançadas pelos carcereiros. Outros foram fuzilados em navios em alto-mar, acusados de tramar uma terceira revolta. Muitos foram despachados para os confins do Acre, onde trabalharam como escravos na extração da borracha, na extensão de linhas telegráficas e na construção de estradas de ferro.
Num pronunciamento, o senador Pires Ferreira (PI) afirmou que os marujos fizeram por merecer:
— Não é justo que se endeusem criminosos como os que assassinaram o comandante João Batista das Neves [no primeiro dia da Revolta da Chibata]. Com aquela marinhagem, composta de homens que abusaram da anistia que lhes foi concedida, não podia haver outro recurso senão energia e energia.
Na mesma linha, o senador Urbano Santos (MA) leu para os colegas uma mensagem do ministro da Marinha:
“Recrutada na camada social quase toda alheia a qualquer grau de instrução, a nossa maruja infelizmente é dotada de espírito inculto e assim se explica não haver apreendido que a anistia apagava a falta que cometera. Por essa deficiência de compreensão, depois mesmo da ação benevolente e generosa dos poderes públicos, ainda perdurou em seu espírito o estado de indisciplina, de maneira que, em vez de se submeter à ordem, parte da marinhagem continuou na insubordinação. O governo então se viu forçado a dominar os novos movimentos com os meios de força de que dispunha, para acautelar os supremos interesses da ordem pública confiados à sua guarda”.
O historiador Álvaro do Nascimento, da UFRRJ, afirma que, ao contrário do quadro pintado pelos políticos governistas, os marujos revoltosos não eram aqueles brutos e ignorantes que só podiam ser domesticados à base de chibatadas:
— Os marinheiros, na realidade, demonstraram capacidade e inteligência na Revolta da Chibata. Eles tiveram consciência de classe, conseguiram criar um movimento organizado, planejaram o motim durante pelo menos um ano e, para agir, escolheram o preciso momento em que o país e o mundo político estavam mais fragilizados, logo após o racha nacional provocado pela Campanha Civilista [a candidatura presidencial de Ruy Barbosa, que foi derrotado pelo marechal Hermes em março de 1910], sem contar que conduziram sozinhos, sem a necessidade dos superiores, aqueles grandes navios de guerra. Os marinheiros queriam que a Marinha toda fosse reformulada, de modo que que eles próprios recebessem mais educação e os oficiais aprendessem a comandar sem violência.
Furioso, Ruy Barbosa denunciou todos os abusos, incluindo a farsa da anistia. Diante das repetidas ofensas à lei, afirmou que o marechal Hermes da Fonseca havia reduzido a Constituição brasileira à condição de “abandonadíssima defunta”. Apesar das denúncias, os oficiais que comandaram as execuções não foram acusados, presos ou condenados. Alguns, ao contrário, foram até promovidos.
João Cândido, o Almirante Negro, foi poupado. Logo após a revolta, ele passou uma temporada na cadeia e outra num manicômio. Expulso da Marinha e na pobreza, viveu o resto da vida vendendo peixe e recebendo ajuda financeira de marinheiros gratos pelo fim da chibata. João Cândido morreu em 1969, aos 89 anos de idade.
Os primeiros escritores que tentaram narrar a insurreição foram barrados pela ditadura do Estado Novo (1937-1945). O livro que tirou o movimento do esquecimento foi A Revolta da Chibata, publicado pelo jornalista Edmar Morel em 1958. Foi Morel quem deu esse nome ao motim. Como não era considerado um episódio histórico, nem sequer tinha nome próprio.
Na ditadura militar (1964-1985), o assunto voltou a ser vetado. A obra de Morel foi logo recolhida das livrarias. Em 1974, a canção O Almirante Negro, de João Bosco e Aldir Blanc, sofreu censura e, para ser liberada, teve que ser rebatizada de O Mestre-Sala dos Mares. A Revolta da Chibata só começaria a entrar nos livros escolares na década de 1980.
De acordo com o historiador Álvaro Pereira do Nascimento, a Revolta da Chibata foi um episódio ocultado durante tanto tempo por dois motivos principais:
— Primeiro, porque a revolta mostrou que o povo brasileiro quer o diálogo com aqueles que estão à frente do Estado, mas pode se organizar, explodir e partir para a luta direta quando eles não escutam suas reivindicações. Segundo, porque fora negros que se rebelaram por serem explorados como os antigos escravos. A Revolta da Chibata derruba aquele mito de que o Brasil é uma democracia racial, onde as raças conviveriam em harmonia. A ação dos marinheiros passou décadas ocultada porque o racismo estrutural só pode permanecer e se perpetuar quando a sociedade acredita que ele não existe e que o que vigora é essa democracia racial.
Fonte: Agência Senado*
Fonte: Agência Senado