A vigência do decreto que previa a inclusão de unidades de atenção primária do Sistema Único de Saúde (SUS) no programa de concessões e privatizações do governo federal não durou nem mesmo 24 horas. Contudo, as rusgas criadas ainda reverberam fora e principalmente dentro do governo. No Ministério da Saúde, interlocutores importantes na construção das políticas do setor consideram “equivocada” e “inaceitável” a forma que o documento foi editado.
A publicação do decreto pelo Ministério da Economia soou como uma interferência direta na Saúde, e isso sem ter discutido a amplitude da medida e quais efeitos poderiam ser esperados. Nos bastidores, fontes ouvidas falam que foi uma cisão desnecessária, apesar de a atenção primária, função primordial das Unidades Básicas de Saúde, precisarem de reforma.
Ligado à Secretaria de Atenção Primária à Saúde, um especialista na construção desse tipo de política pública foi surpreendido pelo decreto, publicado na última terça-feira (27/10).
“Ninguém sabia dessa discussão, e essa foi a falha grave. O ministério ou a secretaria não promoveram um debate técnico sobre como isso seria feito, quando e com quais objetivos. Quando se mexe no SUS é preciso chamar especialistas e a sociedade. Sem isso, gera desconforto”, avaliou.
No Ministério da Saúde, técnicos ainda tentam entender qual o objetivo concreto da inclusão dos postos de saúde no programa de concessões e privatizações.
Apesar de o texto, agora sem validade, não deixar claro, segundo informações repassadas pelo Ministério da Economia ao Ministério da Saúde após a repercussão negativa, a intenção não era reformar o setor, isso do ponto de vista de política de saúde. A iniciativa seria melhorar a infraestrutura, ou seja, a forma de construir e de manter as estruturas prediais dos postos de saúde.
Nas entrelinhas
Apesar da explicação, uma palavra chamou a atenção para aqueles que fazem uma leitura mais atenta: “Operação”. O termo aparece no primeiro artigo do decreto.
“Fica qualificada, no âmbito do Programa de Parcerias de Investimentos da Presidência da República (PPI), a política de fomento ao setor de atenção primária à saúde, para fins de elaboração de estudos de alternativas de parcerias com a iniciativa privada para a construção, a modernização e a operação de Unidades Básicas de Saúde dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios”, frisa o texto.
O problema é que, na leitura de alguns técnicos, a expressão “operação de unidades básicas” pode abrir espaço para a realização de atendimentos médicos.
“Como o decreto foi elaborado do ponto de vista da Economia, não teve o cuidado que se é habitual quando se trata de saúde pública, e sobretudo de SUS. Essa relação entre o SUS e o sistema privado tem que ser muito bem afinada. É dever constitucional do estado prover saúde”, pondera um interlocutor da secretaria-executiva do Ministério da Saúde.
Um terceiro especialista em atenção primária é categórico: “A forma de se fazer foi inaceitável. Não tem como ser assim. Se a decisão é dessa envergadura, não tem como ser feita sem discutir. Foi equivocado”, salienta.
Ele completa: “A atenção primária tem tido um desempenho aquém do mínimo, deixa absurdamente a desejar, mas qualquer que seja tem que ser uma discussão coletiva. A política de atenção primária é construída a muitas mãos”, conclui.
Troca de versões
Para conter a crise, o governo disse inicialmente que o pedido para os estudos partiu do próprio Ministério da Saúde e que o Ministério da Economia só formalizou a inclusão no Programa de Parcerias de Investimentos (PPI).
Porém nesta quinta-feira (29/10), o ministro da Economia, Paulo Guedes, mudou a versão e admitiu que a iniciativa partiu da secretária especial do PPI, Martha Seiller, para aumentar a capacidade de atendimento do sistema de saúde.
Ainda na tentativa de colocar panos quentes e amenizar o clima, Guedes e o vice-presidente da República, general Hamilton Mourão, disseram que não era intenção do governo privatizar o SUS.
Versão oficial
Em nota conjunta, os ministérios da Economia e da Saúde destacam que “é preciso incentivar a participação da iniciativa privada no sistema para elevar a qualidade do serviço prestado ao cidadão, racionalizar custos, introduzir mecanismos de remuneração por desempenho, novos critérios de escala e redes integradas de atenção à saúde em um novo modelo de atendimento”.
De acordo com o governo federal, a participação privada no setor é importante diante das restrições fiscais e das dificuldades de aperfeiçoar o modelo de governança por meio de contratações tradicionais. “Atualmente, há mais de 4 mil UBS com obras inacabadas que, de acordo com o Ministério da Saúde, já consumiram R$ 1,7 bilhão de recursos do Sistema Único de Saúde (SUS)”, frisa o texto.
Segundo a nota, o estudo, que acabou suspenso, visava mensurar capacidade técnica e qualidade no atendimento ao sistema público de saúde. “Devem ser focados em arranjos que envolvem a infraestrutura, os serviços médicos e os serviços de apoio, de forma isolada ou integrada sob a gestão de um único prestador de serviços, o que possibilita estabelecer indicadores e metas de qualidade para o atendimento prestado diretamente à população. Os serviços seguirão sendo 100% gratuitos para a população”.
O presidente Jair Bolsonaro (sem partido), ao anunciar a revogação do decreto nas redes sociais, destacou, entretanto, que o decreto pode ser reeditado caso seja “necessário”