Mamãe.
Como você sabe, estou na Espanha desde antes do último Natal.
Antes de vir pra cá, estive com você e a Ana em Santos, no show de Natal da Prefeitura, e ficamos juntos no Hotel Atlantico, um antigo cassino, e eu fiz questão de me hospedar com você no quarto duplo, deixando a Ana na Suite enorme que haviam reservado pra mim.
Você estava contente, porque era época de Natal, e a atmosfera daquele lugar trazia para nós lembranças de épocas clássicas, de décadas que pertencem à nossa história, que vivemos juntos em tantas férias, da Praia Grande, de Peruíbe, de Mongaguá, as aventuras no Guarujá, em Araxá, em Águas de São Pedro, em viagem pelo Sul, por Curitiba, Porto Alegre, Florianópolis, Blumenau, em viagem pelo Centro Oeste, passando por Ribeirão Preto, Franca, Uberaba, Uberlândia, Goiânia, termas do Rio Quente, em remotas viagens pela Foz do Iguaçú, com idas à Argentina e Paraguai, e até nossas duas generosas férias no Hotel Mabu das Cataratas. Lembranças elegantes daquele Reveillon chiquérrimo lá em Foz, que eu tive o privilégio de compartilhar com você, lembranças de cheirinhos e sabores de tantos Natais que passamos juntos, desde os Natais mais simples lá em Santo Amaro, aos Natais de Araraquara com a vovó e o vovô…
Tudo isso perpassava na minha cabeça quando você já dormia na cama de casal e eu deitado na cama de solteiro ali do lado, olhando o teto que refletia as luzes que vinham da avenida da praia.
Eu inconscientemente sabia que seria uma das últimas oportunidades de estarmos juntos daquela maneira…Fiz uma homenagem no show para você, que foi ovacionada por dezenas de milhares de pessoas… Acho que foi um clímax de celebração da sua personalidade.
Agora que estou aqui em Ávila, vendo as andorinhas voando aos milhares no por do Sol das muralhas, recebo a notícia que você resolveu voar como uma andorinha pra que eu ficasse aqui no chão da Terra lembrando cada pedacinho da sua companhia neste mundo de Meu Deus…
Lembrando que eu e a Ana éramos pequenininhos e você cantava o tempo todo, cantava na lavanderia da casa de Santo Amaro, cantava pendurando os lençóis no varal, cantava dançando tango com o cachorrinho Jobo.
Você espalhava os ovos de páscoa no jardim e o Jobo achava e mascava vários ovos com papel alumínio e tudo. Você assava o coco pra soltar da casca, e depois jogava no chão de cimento pra quebrar…pronto… lá estava o Jobo de tocaia pra roubar uma cuia de coco e fugir de você…aí você ralava e espremia o coco num pano pra fazer manjar branco.
Como não lembrar de você e sua inolvidável sopa de aveia ? e a sopa de ervilha que eu não suportava porque era arenosa na garganta ?
E o seu rosbife, seu bolo Campineiro ?
E quando a Heloisa nasceu, eu tinha 9 anos e via você amamentando, uma cena que me marcou profundamente, porque além de mãe, acima de tudo, você era uma mulher e tinha peito com leite !
Mas essa Hebe não é exatamente do que eu queria falar. Essa foi uma das suas personagens. Havia outras.
Havia a Hebe de tailleur, cliente da Sloper, indo de bonde para o Mappin, me levando pra cortar o cabelo meio-americano que eu odiava porque raspava as laterais… e tomar Ice Cream Soda na Leiteria Ipiranga.
A Hebe que comprava material escolar na loja do MEC na Escada Rolante da Galeria Prestes Maia, que comprava biscoito na Aymoré da Praça do Patriarca… A Hebe que tomava as lições e que era brava pra caramba !
Um dia, há uns 15 anos atrás, fomos para o Hotel dos Lupo em Araraquara, e pude reunir você com a sua irmã Nelly, que não se viam havia anos, e aquilo foi muito bom para nós. Você veio conversar sobre isso, me agradeceu pela iniciativa, e eu aproveitei pra levar um papo sério com você : dizer que eu te amava, e eu sentí que, pela primeira vez, você estava me escutando de verdade. Conversamos sobre a sua vida. Horas a fio. Você contou sua infância e mocidade, contou daquele jeito coloquial que não entrava muito em sentimentos. Foi quando eu pude dizer com todas a letras o quanto eu hoje compreendia o anseio da sua mocidade de ser uma mulher independente e trabalhar.
Foi quando eu pude dizer que eu também teria sido apaixonado pela Hebe na época eu o papai a conheceu. O quanto você era bonita, elegante, culta e determinada: o quanto você era simplesmente imperdível e o papai não vacilou.
Mas depois, numa época ainda rudimentar da luta das mulheres, você teria sido prejudicada porque depois da maternidade não conseguiu reatar a sua história profissional, e nós vimos você triste muitas vezes dentro de casa, chateada e como o papai dizia, neurastênica.
Eu disse pra você que hoje eu te entendia muito bem, no seu sofrimento e frustração, como o papai um dia te entendeu e você finalmente voltou a trabalhar como bibliotecária. Naquela época, eu ví seus olhos brilharem de novo ! Tudo isso eu tive a chance de conversar cara a cara com você, sem interrupções, sem distrações. Foi um momento ímpar pra mim. Finalmente eu me encontrava com a minha mãe. Pra nunca mais desencontrar.
Me lembro que, depois dessas conversas, você se emocionou, me abraçou, entrou no ônibus pra São Paulo e ficou dando tchauzinho enxugando os olhos com o lenço.
Para mim, a última lacuna que havia com você estava preenchida: ver você chorar de emoção por um carinho meu, uma palavra de compreensão. No mais, não faltava nada pra gente ser mâe e filho.
Você é o meu maior exemplo de determinação e de planejamento na vida. Você foi incrivelmente sagaz e certeira na forma de administrar as suas escolhas, inclusive participando de forma decisiva na estratégia profissional do papai. Papai era um gênio abnegado e extremamente humano em sua generosidade. Você foi determinante pra ele crescer na profissão, e para nós, filhos, termos o alicerce pra tudo o que conseguimos ser no mundo. Querida no trabalho, animada nos passeios, uma figuraça alegre e espirituosa, muito educada e articulada em todas as situações, você nunca deixou de brilhar. Vivaz, nunca deixou de ler os seus jornais. Você nos ensinou a sermos simples e realistas, não termos preguiça de aprender sempre, de manter o senso crítico e de gostar dos desafios, um degrauzinho de cada vez, deixando de lado a picaretagem da pretensão e dos delírios de grandeza. Você demonstrou inclusive grande poder visionário, e os seus projetos e fórmulas de vida perduraram até este momento, em que você decidiu partir.
Só existe uma palavra pra eu te dizer, mamãe : parabéns.
Guilherme Arantes
Compositor e cantor