Vestidos de princesa ainda ocupam os armários da casa da família dos Anjos, em Santa Maria. Brinquedos, que ficavam espalhados pelo chão, agora estão encaixotados. Era naquela residência que a pequena Elisa dos Anjos Rodrigues, 3 anos, passava boa parte do tempo. A criança teve a vida interrompida em 26 de outubro de 2018, após ter sido internada no Hospital Maria Auxiliadora, no Gama.
A pequena sofreu complicações respiratórias durante a noite e não foi atendida por médicos do plantão, mesmo com o incessante apelo dos familiares. O fato resultou no indiciamento de uma pediatra por homicídio doloso.
O caso teve desfecho com a conclusão das investigações conduzidas pela 14ª Delegacia de Polícia (Gama), na última quinta-feira (1º/10).
Cíntia Raquel dos Anjos Vieira, 31, viu a filha lutar pela vida na cama do hospital particular. Acionou a equipe médica a noite inteira por meio dos enfermeiros. A solicitação, no entanto, só foi atendida às 7h da manhã do dia seguinte, quando os batimentos cardíacos de Elisa passavam dos 200 por minuto.
Laudos elaborados pelo Instituto de Medicina Legal da Polícia Civil do Distrito Federal (IML/PCDF) constataram que a falta de atendimento presencial da pediatra e a demora na atuação dos médicos foram determinantes para resultado morte.
O depoimento de uma enfermeira que presenciou a situação foi fundamental para a elucidação do caso. A Polícia Civil do Distrito Federal reuniu provas que apontam para o cometimento de homicídio doloso.
Com isso, a médica Ana Caroline Oliveira Cavalcante foi indiciada pelo artigo 121 do Código Penal, uma vez que a omissão, de acordo com os investigadores, foi penalmente relevante, pois a pediatra tinha, por lei, a obrigação de cuidado, proteção ou vigilância em relação à paciente e se omitiu na prestação de atendimento.
Agora, cabe ao Ministério Público do DF (MPDFT) apresentar ou não a denúncia à Justiça.
A saga por socorro
Em entrevista exclusiva ao Metrópoles, Cíntia Vieira e sua mãe, Maria de Fátima dos Anjos, relembraram os últimos momentos de Elisa. Elas contam que, na madrugada de 25 de outubro, a criança apresentou febre acompanhada de dor de garganta. De manhã, ela foi levada ao hospital, onde recebeu o primeiro atendimento.
“O médico viu que o peito dela estava chiando, não pediu exames, sequer tirou sangue. A Elisa o tempo inteiro falava que a língua estava doendo. O médico receitou alguns remédios e pediu para dar para ela urgente. Passamos na farmácia, mas logo voltamos ao hospital porque ela não parava de chorar”, explicou a avó da pequena.
A família reforça que a criança era saudável, havia feito exames de rotina seis meses antes. “Quando voltamos pela segunda vez, a médica suspendeu todos os remédios e a internou na enfermaria. Tiraram o antibiótico e deram apenas dipirona e soro. Não entendi nada, porque anteriormente o médico disse que ela precisava desses medicamentos com prioridade”, acrescentou Cíntia.
Nas primeiras horas de internação, Elisa ficou inquieta. Andava de um lado para o outro na enfermagem. Carregava o soro pelos corredores e dizia para a família que estava bem, pronta para voltar para casa. Com o passar do tempo, começou a apresentar uma piora no quadro de saúde. Tinha dificuldades para falar e respirar.
As duas passaram a fazer apelos desesperados para a equipe de enfermagem. A angústia era tanta com a falta de respostas que a mãe pensou em tirar a filha do hospital.
Veja o relato da mãe e da avó de Elisa:
“Ela estava aprendendo a falar, não sabia explicar o que estava sentindo. Fazia muito esforço para respirar. Estava batalhando para se manter viva. Os enfermeiros me convenceram de que não era nada, que estava tudo bem. Disseram que estávamos seguras no hospital”, lembrou a mãe.
O desespero de estar dentro do hospital e não conseguir o atendimento solicitado fez com que a mãe e a avó da criança passassem pela pior noite de suas vidas. “Ainda tivemos de ouvir uma das técnicas comentar que a Elisa estava muito cansada e parecia que tinha corrido uma maratona”, recordou Cíntia.
A consulta feita pelos médicos só ocorreu por volta das 7h do dia 26 de outubro, na troca de plantão. A família relata que os profissionais se assustaram quando viram a situação da criança e não entenderam o porquê de nada ter sido feito durante a noite.
“Quando eles chegaram, deram um remédio que acelerou ainda mais os batimentos cardíacos. Parece que foi o tiro de misericórdia. Ela começou a ficar roxa. Ficou quietinha, pensei que ia começar a dormir, mas na verdade, ela começou a morrer”, disse a avó, emocionada.
Entre lágrimas, a mãe se recorda da última conversa que teve com a filha. “Eu ficava pedindo para ficar quietinha e tomar o remédio. Só que ela se debatia muito. Depois que tudo terminou, ela falou: mamãe, eu vou ficar quietinha, viu”, contou Cíntia.
A morte foi declarada às 10h10. A família, então, buscou ajuda da polícia para desvendar o que, de fato, ocorreu.
Investigação
O delegado responsável pelo caso, William Andrade Ricardo, explicou ao Metrópoles que investigações como essas apresentam diversos obstáculos, entre eles a dificuldade em ter acesso à íntegra dos prontuários e a constatação dos fatos pelo IML. Pois, muitas vezes, informações importantes são omitidas para os peritos.
“O diferencial desse inquérito foi que a equipe de enfermagem registrou, no prontuário da paciente, a falta de atendimento médico. Constatamos que a médica não foi ver a criança. Esse registro foi feito já prevendo uma possível imputação de culpa para a enfermagem”, detalhou o policial.
A partir das provas, os investigadores passaram a ouvir integrantes da enfermagem do hospital, que confirmaram os fatos. Aditamentos foram feitos aos laudos elaborados pelo IML. O último concluiu que o não atendimento da paciente foi determinante para a morte da criança.
Ao finalizar o inquérito, o delegado confidenciou que o caso foi marcante em sua carreira. “Trata-se de uma criança de 3 anos, um fato que marca a nossa atividade profissional em dar uma resposta para a mãe que sofre há dois anos com a perda da sua filha. É um motivo de satisfação a gente poder dar essa resposta para a família. Muitas delas não conseguem uma resposta satisfatória e ficam sem saber exatamente o que aconteceu dentro do hospital”, completou o delegado.
A família de Elisa segue com as sequelas da perda prematura. Mãe e avó passaram a usar medicamentos controlados, mas, com o fim das investigações, consideram que um ciclo, enfim, foi encerrado. “Hoje, a Justiça está sendo feita porque realmente ficou comprovado que eles tiraram a vida da minha filha”, disse Cíntia dos Anjos.
O outro lado
Márcio Lima da Silva, advogado da médica, defende que a profissional não teve responsabilidade na tragédia que vitimou a pequena. “O cuidado com crianças para ela é não somente um dever, mas um prazer. Infelizmente, nesse caso, a criança faleceu, mas não por fato ou ato imputável à médica”, alegou o defensor.
“O indiciamento ainda será analisado pelo Ministério Público, concedendo a oportunidade de melhores esclarecimentos e análise de todos os que estavam de plantão no dia. A profissional estará sempre disponível a prestar qualquer esclarecimento sobre os fatos”, diz a nota assinada pelo advogado.
A direção do Hospital Maria Auxiliadora foi acionada, mas não respondeu aos questionamentos da reportagem até a última atualização deste texto. O espaço permanece aberto.
*Com informações do Metrópoles