*Frutuoso Chaves
Era assim, naqueles finais de 1950: São Paulo, Rio de Janeiro e Recife. As três cidades brasileiras relacionadas por ordem de grandeza e importância. E foi assim que eu conheci a última delas, ao ser despachado aos 10 anos da casa paterna, na pequena Pilar, para os estudos primários na terceira maior capital do País.
Cinco horas por trem até o desembarque na casa da querida Tia Mariinha, moradora de uma rua incrivelmente enladeirada, bem diferente dos planos rasos de Pilar, na beira do Paraíba.
A 16 de Julho, em Jangadinha, subúrbio no limite com Jaboatão dos Guararapes, ganhava, então, comigo, mais um morador. Ali, eu gostava de ficar no ponto mais alto, em frente à sexta ou oitava casa depois da minha, de onde podia enxergar, a grande distância, alguns edifícios.
Com que ansiedade aguardei o momento de pôr os pés na calçada de um daqueles prédios. Isso, porém, demorou a acontecer. A primeira escola ficava no bairro pegado ao meu, onde a compra da bolsa e do material escolar também foi feita.
Vinte dias depois, eu já estava arrependido da mudança. Rua sem graça e sem bola. Os meninos da minha idade me pareciam no limite do alcance da vista, como os prédios do centro. A saudade de casa apertou e entristeci.
Eis que, num domingo de sol, apareceu-me o Tio Boanerges para o almoço. Penso, hoje em dia, que fora uma aparição combinada com a irmã que então já notava o agravamento diário da minha tristeza. Voltasse eu para casa e ela perderia o filho que lhe chegara por empréstimo.
Recebi, com alegria, uma pistola de madeira que atirava bolinhas para, logo depois, desejar o regresso aos amigos de Pilar com os quais brincava de “Rende-se, aí”.
Lembrei que um deles, Coló, fora expulso da brincadeira. Quando integrante do grupo que procurava, ele e sua balieira disparavam pedrinhas no lombo dos que se escondiam. Depois do “Rende-se, aí”, vinha o tiro. Fosse, agora, eu teria como revidar em grande estilo.
Pistola à parte, o melhor veio depois do almoço. “Vamos dar uma volta”. Reagi ao convite com um pulo, tomei o banho mais curto de toda minha vida e me pus, bem vestido e penteado, à disposição do irmão caçula da minha mãe.
Meu primeiro ônibus já foi uma grande emoção. Minha primeira coca-cola nem tanto, porque dei um arroto doloroso pelo nariz. Quem já passou por isso sabe do que falo.
Quantas novidades. Boanerges, de fato, veio com o propósito de me animar. Vendedor do Rum Merino, ele me levou ao sexto andar do escritório, cujas chaves possuía, sem antes me apresentar ao elevador. Desconfiei daquele quarto pequenininho, sem sentido. Número escolhido na fileira de botões, tudo ali subiu, para o meu espanto.
Ao declinar do sol, acenderam-se as luzes do Recife e, com elas, os anúncios luminosos. O do óleo Don-Don, no topo de um prédio da Rua da Aurora, refletia nas águas do Capibaribe a imagem do cozinheiro com sua lata e os pingos a caírem na frigideira, tudo um encanto feito de luz.
Nas férias de junho, Coló não acreditou nas minhas histórias. “Recife é grande?”, perguntou. Respondi que ainda não conhecia tudo, mas a parte já percorrida tinha comprimento maior do que a distância entre Pilar e Itabaiana, sem sair da rua.
Descrevi um edifício como uma porção de casas, umas sobre as outras, o maior deles com uns 18 andares. “O sujeito vai chegar lá em cima mortinho da silva”, comentou, desconfiado. E ouviu: “Nada disso. Tem o elevador, um quartinho com botões enfileirados. Você escolhe um, aperta e o bicho sobe sozinho”.
Acho que isso foi demais para ele, posto que nada respondeu. Eu apenas soube de suas impressões, dois dias depois, pelo amigo Zeton. “Coló disse que você voltou do Recife mentindo como o diabo”.
Pouco me importava. Eu estava de volta aos meus, embora com o tempo de permanência contado. Em julho, o trem, de novo, me arrebataria.
Regressei a Pilar na noite de uma sexta-feira para as festas juninas. O reencontro quase imediato com a turma deu-se na praça da Igreja. Fui dormir com o coração em festa.
Acordei perto das 5 da manhã com o barulho de gente a arrumar as barracas da feira livre do sábado. Feliz, senti o cheiro do abacaxi descarregado na rua e conferi a presença dos irmãos nas camas ao lado da minha. Meu pai, dono de padaria, já se levantava para cuidar da primeira fornada. Sua conversa com minha mãe me chegava aos ouvidos como um canto de ninar. Sem dúvida nenhuma, eu havia voltado.
Antes de tornar a dormir, atinei que a terra natal, por pequena que seja, sempre nos será mais importante e mais querida do que a terceira maior cidade de qualquer país. Pilar então era para mim o centro do mundo. E confesso: assim ainda é, de vez em quando, para o setentão que hoje sou.
* Jornalista profissional com passagens pelos jornais paraibanos A União (Redator e Chefe de Reportagem), Correio (Redator e Editor de Economia), Jornal da Paraíba (Editorialista), O Norte (Editor Geral), O Globo do Rio de Janeiro e Jornal do Commercio do Recife (correspondente na Paraíba, em ambos os casos). Também pelas Revistas A Carta (editada em João Pessoa) e Algomais (no Recife).