Nos últimos cinco anos, dezenas de famílias foram dilaceradas pelo mesmo tipo de violência: o feminicídio. Nesse período, 107 mulheres perderam a vida vítimas do crime de intolerância. Levantamento obtido com exclusividade pelo Correio mostra que 137 crianças e adolescentes tornaram-se órfãos devido aos assassinatos por preconceito de gênero, no Distrito Federal. Lidar com esse sofrimento virou parte da rotina.
Era início de noite, em 15 de janeiro, quando Bruno*, de 8 anos, viu a própria mãe, Rute Paulina da Silva, 42, ser assassinada a facadas. O pequeno acompanhava a dona de casa preparar o jantar na residência do avô, em Samambaia Sul, quando viu o pai, Ailton Barbosa Paulino, 40, atacá-la. Ele fugiu do local, mas se entregou, horas depois, à Polícia Civil. O filho mais novo do casal, Josué*, de apenas 2 anos, dormia no momento do crime.
Bruno e Josué são filhos de uma das 58 vítimas de feminicídio que eram mães de menores de 18 anos. Dados da Secretaria de Segurança do Distrito Federal (SSP-DF) indicam que 60,8% dos órfãos eram crianças, e 39,2%, adolescentes. Em 36,2% casos, eles perderam tanto a mãe quanto o pai — que foram presos ou cometeram suicídio após os crimes.
As sequelas da violência podem ser percebidas no comportamento das crianças e dos adolescentes, como ocorre com Bruno e Josué. Seis meses após o feminicídio da mãe, os garotos reconstroem a vida ao lado do tio materno, o técnico em enfermagem Davi Sillas da Silva. O mais velho recebe acompanhamento psicológico semanal para tentar superar um trauma que, até hoje, não conseguiu verbalizar. “Em nenhum momento ele fala sobre o que aconteceu com a Rute. Ele sempre foi um menino introspectivo, mais fechado, e continua assim. Já o mais novo, começou a dizer palavras inteiras por agora. Nas últimas semanas, aprendeu a falar ‘mamãe’, e nos dói muito ver que ele não tem a quem chamar de mãe”, conta Davi.
“É realmente muito difícil lidar com tudo o que aconteceu, para todos nós. Mas, é ainda mais doloroso para as crianças, pois não sabem o que pensar nem como se encaixar depois de um crime como esses. Para tentar ajudá-los, eu e minha família vendemos rifas de um liquidificador para poder reformar a casa onde tudo aconteceu, para tentar afastar as memórias da cena de horror, que marcou para sempre a vida deles”, detalha.
Davi Sillas decidiu buscar a guarda de Bruno e Josué como um forma, ao próprio ver, de fazer justiça pela vida da irmã. “Nunca imaginei ter filhos, contudo, após o que aconteceu, decidi lutar pela guarda dos meus sobrinhos. Decidi criá-los buscando a confiança e a abertura para oferecer o amor, carinho e dedicação que a minha irmã daria. Nosso núcleo familiar permanece unido por eles, com a presença de tios, tias e do avô. O melhor tratamento para algo tão trágico é o amor e o acolhimento. É mostrar que a vida continua, e que cabe a nós mesmos nos tornamos melhores. Que o amor apoia, não te força a nada. O meu maior desejo é que se tornem homens de verdade, que mostram os sentimentos, não vejam as mulheres como um objeto de posse, e sejam ótimos companheiros e pais”, destaca, emocionado.
Traumas
A psicóloga da Defensoria Pública do DF e subsecretária de Atividade Psicossocial, Roberta de Ávila, explica que, em muitos casos de feminicídios, crianças e adolescentes precisam lidar, não apenas com a dor da perda da mãe e às vezes do próprio pai, mas com o sofrimento de ter presenciado o momento do assassinato. “Esse é um problema social muito grave. É preciso, urgentemente, focar em políticas públicas que minimizem os efeitos desse trauma nessas vítimas indiretas. Assim, podemos impedir a perpetuação da naturalização da violência de gênero entre as gerações”, defende.
A especialista destaca que os órfãos podem desenvolver problemas psíquicos devido à experiência trágica vivida. “Essas crianças e adolescentes podem ter flashbacks do evento traumático, como pesadelos, estado constante de alerta, sentimentos de raiva e impotência. A longo prazo, podem apresentar alguma psicopatologia, como transtorno de estresse pós-traumático. Sem ajuda profissional, é difícil que elas não sejam prejudicadas, pois podem reproduzir a violência ou se tornarem potenciais vítimas no futuro”, adverte.
Queda no índice
De janeiro a julho desde ano, a Secretaria de Segurança Pública contabilizou 11 assassinatos de mulheres por questão de gênero. No mesmo período de 2019, foram 16, ou seja, cinco casos a menos. Desde a criação da Lei do Feminicídio, em 9 de março de 2015, a Polícia Civil do Distrito Federal solucionou 96,2% dos crimes, com a identificação do suspeito.
A vítima mais nova a perder a vida apenas por ser mulher, foi uma recém-nascida de seis meses. Outro recorte do estudo é quanto à cor da pele das vítimas, que se identificam como pardas ou negras. Na avaliação da defensora Rita Lima, coordenadora do Núcleo de Defesa da Mulher da Defensoria Pública do Distrito Federal (Nudem), é preciso “fomentar e aprimorar as políticas públicas com a percepção que a experiência das mulheres vítimas de violência não é universal”.
Rita Lima sustenta que, do mesmo modo que houve avanço na discussão de gênero, é preciso pensar nas vulnerabilidades das vítimas. “Ainda não são pensadas nas particularidades das negras, que estão expostas à maior violência social, por causa do racismo estrutural”, finaliza.
Três perguntas para
Anderson Torres, secretário de Segurança Pública do DF
Com a pandemia, quais ações são realizadas para prevenir as mortes por preconceito de gênero neste momento em que vítima e autor estão em isolamento?
Desde o início da pandemia, a subnotificação era uma preocupação das autoridades policiais pela dificuldade da denúncia. O trabalho das forças de segurança não parou durante todo este período, e, muito rapidamente, as polícias se ajustaram à nova realidade. Em abril, por exemplo, a Polícia Civil ampliou o atendimento da Delegacia Eletrônica para o registro de casos de violência doméstica. As visitas do programa de Prevenção Orientado à Violência Doméstica e Familiar (Provid), da Polícia Militar, foram adaptadas. Para se ter uma ideia, o Provid realizou mais de 4 mil visitas a vítimas este ano, sempre respeitando todas as medidas sanitárias necessárias em relação à covid-19.
Apenas 25% das vítimas de feminicídio buscaram ajuda antes de serem mortas. A secretaria tem projetos para tentar chegar até a essas mulheres antes do episódio fatal de violência?
O combate à violência contra a mulher é prioridade para a Secretaria de Segurança Pública do DF. A Câmara Técnica de Monitoramento de Homicídios e Feminicídios (CTMHF) elabora diagnósticos criminais para definição de políticas públicas a fim de otimizar medidas repressivas e preventivas. Com base nesses estudos, a SSP/DF promove, desde o ano passado, a campanha #MetaaColher. Com slogan “a melhor arma contra o feminicídio é a colher”, a ideia é incentivar a denúncia. O feminicídio é um crime de difícil prevenção e de fácil elucidação. Por acontecer, em sua maioria, no ambiente familiar, a denúncia é a melhor forma de proteger as mulheres.
A maioria dos casos de feminicídio é de mulheres que se consideram pardas ou negras. A pasta pensa em meios de aprimorar as políticas públicas de prevenção, com recorte de raça, para diminuir a taxa nesse grupo?
A CTMHF analisa, individualmente, as características de cada caso, traçando perfil detalhado de vítimas e de autores. O objetivo é entender o contexto de cada crime e elaborar políticas públicas abrangentes, voltadas às diversas realidades. Importante destacar que esse conhecimento é compartilhado com outros setores do Executivo local, do Judiciário e da sociedade civil, para subsidiar políticas em diferentes frentes de atuação. (CB)