Maria José Rocha Lima
Nos últimos dias, meus amigos baianos Ana Vieira e Vitor Hugo Soares, os dois jornalistas, me emocionaram com imagens e comentários instigantes, sobre um dos belos recantos da Bahia: o Adro da igreja do Senhor do Bonfim, bairro, onde eu vivi a infância e boa parte da adolescência.
Senhor do Bonfim é Padroeiro dos Baianos e foi o pai que eu tive na infância. Nos momentos de dificuldades, eu com toda a minha inocência corria e me ajoelhava nos pés do santo e voltava para casa, convencida de que o Nosso Senhor resolveria tudo; e assim fui fazendo a difícil travessia da vida de criança de pais separados.
Viver no Adro Bonfim, sob a proteção do Senhor nos dava uma sensação de paz; de conforto espiritual; e até de constituirmos uma só família.
O senhor do Bonfim ungia e unia a comunidade. Todos nos conhecíamos. Qualquer desarmonia no lar; práticas excessivas no consumo de álcool; práticas de violência eram reprovadas pela comunidade. As reprovações se davam, muitas vezes, com “penas próprias”, quase naturalizadas.
Todos pareciam se comportar como numa orquestra. Tínhamos a igreja, presidida com muita autoridade pelo famoso e exigente Padre Lourival; a casa paroquial no mesmo território a que comunidade estava subordinada; as casas e a escola das obras assistenciais; o posto de saúde; as lojas de santos, da exemplar família Medina, nas quais eram vendidas as medidas milagrosas do Senhor do Bonfim; as imagens de santos; os objetos de cera, que eram deixados na sala de milagres da igreja e outros objetos religiosos.
Todos os dias o sino tocava, às seis horas, quando tinha casamento ou outras comemorações ouvíamos a Ave Maria de Shubert, lindamente cantada por seu Otávio, nosso vizinho.
No início da noite, de volta da escola brincávamos na escadaria da igreja jogávamos Baleado no Romeiro, com a minha irmã Sueli; com as amigas das famílias Badaró e Bahia.
O chamado Romeiro é aquele lugar mostrado na foto, pela jornalista Ana Vieira: um extenso corredor de casas das Obras Assistenciais do Senhor do Bonfim, que acompanha quase toda a extensão do Adro, de frente para o jardim, cheio de Palmeiras e Oitizeiros.
Naquele conjunto habitacional de casas coloniais brancas, com muitas janelas pintadas de verde, como as portas da igreja havia numa das suas extremidades uma delegacia, para auxiliar Senhor do Bonfim, na garantia da ordem e da paz, só agora lembrei – me, que esta existia. Nunca imaginei que uma delegacia poderia funcionar tão harmonicamente numa comunidade, passando despercebida. Só, hoje, escrevendo por provocação dos jornalistas baianos, lembrei-me da sua existência, no Adro.
As memórias são muitas e agradáveis. Outro dia, Leninha Medina, uma querida amiga, daquele tempo, que mora aqui, em Brasília, me perguntou: Mara, você se lembra de seu Carlos? E rimos muito do primitivo processo fotográfico, no qual ele lambia uma placa de vidro; lambia a chapa; tocava a língua nas fotos; e dizia que era para garantir a qualidade do trabalho. A gente que via aquela cena não podia entender por que aquele homem a cada instante “lambia” as fotografias? Rimos muito…
No Bonfim, todos se conheciam. Quando Vitor Hugo Soares falou que Capinam também conviveu no Bonfim, logo me lembrei. Todos sabíamos quem entrava e quem saia da Sagrada Colina.
As Novenas do Senhor do Bonfim eram acompanhadas por toda a comunidade, os sinos tocavam dobrado; a igreja exalava um forte cheiro de Angélica, uma flor perfumadíssima, que ornamentava o altar. O padre vestia uma roupa superbonita. E o Santíssimo de Ouro reluzente era erguido e o Corpo de Cristo apresentado de forma diferenciada a todos os presentes.
Depois chegava a Lavagem das Escadarias do Bonfim, só nesse curto período que fora transformado em profano, nos perdíamos um pouco dos nossos pares comunitários.
Os moradores do Bonfim, bem antes dos Cientistas sociais concluírem, organizaram uma aliança sutil, entre família; igreja; polícia; escola; saúde; e comunidade para identificar, priorizar e resolver os problemas como crimes, drogas, medos, desordens físicas, morais, com o objetivo de melhorar a qualidade geral de vida da comunidade , construindo uma Corrente do Bem, transmitindo paz, segurança e cidadania.
Quantos brasileiros gostariam de estar ali?
Maria José Rocha Lima é mestre e doutoranda em educação. Foi deputada estadual de 1991 a 1999. é fundadora da Casa da Educação Anísio Teixeira.