Maria José Rocha Lima*
No Flamengo, o descaso com o alvará de funcionamento e o alojamento em containers para os meninos, quase todos das classes populares, me fizeram lembrar as estranhas teses defendidas por algumas autoridades educacionais de que para os pobres era melhor que escolas e outros equipamentos comunitários fossem construídos com uma arquitetura mais de acordo com a realidade deles.
Desse modo, defendiam para os pobres escolas e centros comunitários em galpões, barracões ou debaixo de árvores, como ocorria em alguns países africanos, com arquiteturas mais de acordo com as casas populares, para não causar choque de realidade.
Para eles, o que importava era o acesso aos bens culturais, espirituais. Pouco ou nada importava a qualidade do equipamento escolar ou comunitário.
Em 1979, bem novinha, recém- aprovada no concurso de professora, fui técnica da Secretaria de Educação da Bahia. Naquele período defrontei-me com essas estranhas, para não dizer perversas, teses sobre os equipamentos públicos para os pobres.
Naquele tempo, as elites de direita e de esquerda pareciam menos treinadas nos subterfúgios, ainda não haviam descoberto o discurso da “inclusão social”.”). Muitos quadros técnicos eram oriundos ou vinculados às elites baianas.
Os mais “aristocráticos” declaravam despudoradamente que escolas e centros culturais para pobres, ou nas áreas pobres, deveriam ser construídos mais de acordo com a arquitetura local.
Escolas bonitas e centros comunitários bonitos nos Alagados, por exemplo, poderiam se constituir numa afronta àquelas crianças e jovens que, pela falta de costume de freqüentar ambientes mais sofisticados, se inibiriam.
Para a realização de discriminação contra os pobres, invocavam o nome de santos teóricos em vão, buscando bases científicas para as defesas das suas teses. Usavam as experiências do continente africano, outras vezes exemplificavam com campanhas como: “Com os Pés no Chão também se Aprende a Ler”, ou se inspiravam nos Movimentos de Educação Popular do Sudeste e Norte do Brasil, que advogavam os barracões comunitários, valorizando os saberes prévios do povo e suas realidades culturais na construção de novos saberes.
Comprei muitas brigas, fiz mil discursos, até que, já exaurida, descobri um discurso de Anísio Teixeira, no qual ele denunciava os elitismos reinantes nas práticas educacionais e propunha uma escola única no Brasil, na qual estudassem os filhos dos ricos e dos pobres, nas mesmas condições.
E o educador baiano provocava afirmando que nessa escola deveriam estudar os filhos dos ministros e dos operários. Essa escola deveria ser bonita, limpa, organizada, bem equipada, com professoras preparadas no curso superior, e de preferência uma escola de jornada de turno integral, na qual o aluno estudasse num turno e no outro realizasse atividades esportivas, culturais e profissionais integradoras.
Anísio Teixeira, nesse mesmo discurso, denunciava o quão perversas eram as autoridades brasileiras, em relação às classes populares. O educador baiano desmontava as ideias elitistas, referindo-se a um episódio que acontecera na Escola Parque em Salvador, emblemático da sua luta pela escola igual para todos.
Ele contava que durante a solenidade de inauguração da Escola Parque, na presença do Governador, no Bairro do Pau Miúdo, enquanto as autoridades discursavam, os meninos daquela comunidade rolavam no chão do auditório de estilo parquet, um belo assoalho brilhante e liso formado por um conjunto de placas de madeira que são dispostas em padrões de mosaicos. Os meninos passavam as mãos no chão, se miravam no espelho do assoalho.
Os professores e autoridades presentes na inauguração se mostravam incomodados, perturbados, envergonhados com a presença daquelas crianças.
Anísio Teixeira, emocionado, se pronunciou sobre a sensibilidade daquelas crianças, que tão bem souberam distinguir a bela geometria do parquet e admirar e usufruir do seu conforto.
Transformara o seu discurso num libelo contra os elitismos que marcam a cultura brasileira, mostrando que todos podem amar o belo e poderão usufruir das coisas boas, refinadas, sofisticadas, se a eles forem dadas oportunidades de conhecê – las.
E concluiu defendendo escolas bonitas, limpas, organizadas, de preferência ricas, uma Escola Única para os pobres e para os ricos, como uma forma verdadeiramente democrática de igualar os desiguais.
Que os clubes de futebol sejam advertidos, denunciados, desmascarados, punidos por suas práticas perversas, discriminatórias e elitistas de tratamento humilhante e ofensivo contra os filhos dos outros, crianças e adolescentes das classes populares.
*Maria José Rocha Lima é mestre e doutoranda em educação. Ex-deputada do Estado da Bahia, de 1991 a 1999, é fundadora da Casa da Educação Anísio Teixeira.