Disputa judicial entre a entidade responsável pela ordem religiosa de Planaltina e empresa de telefonia pode levar a leilão alguns terrenos da região. Problema teve início com a instalação de uma antena de telefone celular
Uma briga judicial entre a empresa de telefonia Tim e a entidade responsável pelo Vale do Amanhecer abriu brecha para que os lotes e as construções dos seguidores de Tia Neiva sejam leiloados. Além de se tratar de um espaço religioso, as terras são públicas e pertencem à Agência de Desenvolvimento de Brasília (Terracap). A situação causou indignação àqueles que ocupam os locais penhorados, mas que não foram comunicados sobre o processo. O imbróglio fez com que o Ministério Público do Distrito Federal e Territórios (MPDFT) entrasse no caso.
Na última sexta-feira, o promotor Roberto Carlos Batista, da Defesa do Meio Ambiente e do Patrimônio Cultural, pediu 30 dias para analisar o processo, “haja vista que envolve questões de natureza ambiental, além de patrimônio cultural (expressão religiosa)”. O problema ambiental é relativo à instalação da antena pela operadora de telefonia e à emissão de ondas eletromagnéticas pelo equipamento. Procurado pela reportagem, o promotor informou que ainda não recebeu a documentação; por isso, não poderia se manifestar.
Um recurso impetrado pela entidade Obras Sociais da Ordem Espiritualista Cristã (Osoec), responsável pelo Vale do Amanhecer, conseguiu adiar o leilão. Entre os possíveis interessados na compra estaria a Igreja Universal do Reino de Deus. A Universal nega. Fontes ouvidas pelo Correio, contudo, afirmam que o bispo Edir Macedo, mentor da igreja, teria especial interesse pela região. Nas redes sociais, grupos disseminam o interesse da Igreja Universal e pregam boicote à Tim.
Impasse
O imbróglio judicial começou em 2014. A operadora firmou um contrato de aluguel com a Osoec para instalar uma antena de celular no Vale do Amanhecer. Segundo os autos, estava previsto que os primeiros cinco aluguéis seriam de R$ 13 mil e os demais, de R$ 700 — depois, o valor subiu para R$ 952,67. Porém, em 5 de março de 2014, em vez de pagar o preço estabelecido, a Tim transferiu à Osoec, por meio da conta de uma filha de Raul Zelaya (responsável pela Osoec), R$ 581.294,95. Ao perceber o equívoco, um mês depois, a empresa pediu o dinheiro de volta, mas a Osoec havia gastado R$ 281.294,95. O restante, a entidade devolveu à operadora. “O depósito não foi identificado; por isso, o Raul achou que se tratava de uma doação. Foram devolvidos R$ 300 mil. Ele ofereceu terreno e o pagamento com parcelamento dos aluguéis, mas a Tim não aceitou”, explica Paulo Alves da Costa, advogado da Osoec.
A Tim, então, recorreu à Justiça e solicitou o ressarcimento do depósito equivocado. A juíza Tatiana Dias da Silva determinou a listagem dos terrenos passíveis de penhora. “Algumas vezes, recebemos grandes quantias, inclusive, de empresários que frequentam o templo. Quando o dinheiro caiu, parte do valor foi sugado pelo banco, porque a conta estava negativada. Outra parcela usamos para pagar dívidas”, detalhou Raul. Ele garantiu, ainda, que não houve má-fé. “Assim que fomos comunicados sobre o erro, devolvemos o que estava disponível. Temos interesse em regularizar a dívida, mas isso precisa ser negociado. Não temos esse dinheiro. A Tim, aliás, deixou de pagar o aluguel do espaço da torre”, emendou.
A defesa do Vale do Amanhecer alegou que o local era patrimônio religioso. Logo, não poderia ir a leilão. Entretanto, a sentença refutou a hipótese e deu ganho de causa à Tim, alegando enriquecimento ilícito. De acordo com a decisão, apenas a área do templo é impenhorável, e toda a vizinhança pode ser leiloada. A Terracap informou que as terras são da empresa, mas que o órgão não se manifesta, “pois se trata de decisão estritamente judicial”. Um decreto do GDF delimitou a área do Vale do Amanhecer em 22 alqueires, mas a Osoec não tem posse nem propriedade do terreno. A Tim informou que não comenta “ações judiciais em curso, prezando pela ética e pelo sigilo de terceiros”.
A informação de que as terras onde se ergueu o Vale do Amanhecer podem ir a leilão deixaram frequentadores e moradores do local em alerta. O artista plástico Joaquim Silva Vilela, 58 anos, mantém uma loja de obras de arte de cunho religioso há 41 anos. O espaço de trabalho foi uma doação de Tia Neiva (leia Memória). Para reverter o leilão, ele recorreu à Justiça com embargos de terceiros e conseguiu travar o processo principal. “Acreditamos que encontraremos outra maneira de resolver o problema. Certamente, quem deve arcar com os débitos não são a Ordem Espiritualista Cristã ou as obras pertencentes à doutrina, e sim quem contraiu a dívida, com seus bens pessoais”, argumentou.
Apesar de a decisão sobre a penhora ser de conhecimento do presidente da Ordem, Joaquim soube do caso no fim do ano passado, por meio de um amigo. “Estava tudo muito obscuro. Para um bom gestor, seria digno que, numa situação dessas, fizesse uma explicação clara. Mas preferiram deixar no sigilo”, criticou. O artista plástico ajuda na divulgação de um abaixo-assinado para tentar evitar o leilão, disponível on-line há cerca de uma semana. Às 18h42 de ontem, o documento contava com o apoio de 2,8 mil pessoas.
Dona de um restaurante e quartos disponíveis para aluguel da região, Dalia Francisca Castro e Silva, 62, também se queixa da falta de comunicação dos gestores com os proprietários dos imóveis. “Ganhei o direito de uso deste espaço no Fórum de Planaltina há cerca de 10 anos. Não estou apenas tentando atrasar o leilão, apesar de considerá-lo errado. Por direito, posso estar aqui”, avaliou a empresária, que trabalha no local há 26 anos. E completou: “É muito triste ver uma obra tão grandiosa como a de Tia Neiva sendo reduzida a isso”
Fundadora do Vale do Amanhecer, Tia Neiva teve as primeiras visões em 1957.As mensagens, segundo ela, vieram de uma entidade denominada Pai Seta Branca, que teria sido em sua última vida um índio tupinambá, mas que, em vidas anteriores, foi São Francisco de Assis e um jaguar e, antes, chegou de outro planeta, a bordo de uma espaçonave. O sincretismo é uma das marcas da doutrina. Nos templos do Vale do Amanhecer, ela está em toda parte. A cruz cristã, a estrela judaica de Davi e a lua crescente muçulmana dividem espaço com imagens de entidades do candomblé, de conceitos espíritas e pirâmides egípcias. Os seguidores de Tia Neiva acreditam que o ser supremo é o índio Seta Branca, que lidera a corrente indiana do espaço, um regimento de espíritos de luz. A Terra, para eles, foi colonizada há 32 mil anos por seres imortais do planeta Capela, que se miscigenaram com os terráqueos e criaram várias civilizações ao longo da história.
Neiva Chaves Zelaya (foto) nasceu em 1925, em um povoado de Jaraguá, norte de Goiás. Casou-se, aos 18 anos, com Raul Zelaya Alonso, então secretário do engenheiro Bernardo Sayão, padrinho de casamento deles. Teve quatro filhos: Gilberto, Carmem Lúcia, Raul Oscar e Vera Lúcia. Ficou viúva aos 22 anos e, sem recursos, decidiu criar os filhos sozinha. Primeiro, abriu o Foto Neiva, em Ceres (GO). Trabalhava como fotógrafa e laboratorista, mas as químicas usadas na revelação causavam problemas respiratórios.
Neiva, então, trocou o comércio por uma chácara. Cuidou sozinha do cultivo até perceber que o trabalho era pesado demais. Vendeu o imóvel e comprou um caminhão. Com seu veículo de carga e os filhos, percorreu o Brasil, atuando como fretista ou mascate, até fixar-se em Goiânia e receber o convite, por parte de Bernardo Sayão, para trabalhar na construção de Brasília. Mudou-se para a Cidade Livre — atual Núcleo Bandeirante —, em 1957, quando começou a mediunidade.
No ano seguinte, conhecida como Tia Neiva, deixou o Núcleo Bandeirante e fundou, em 8 de novembro de 1958, a União Espiritualista Seta Branca (Uesb), na Serra do Ouro, próximo a Alexânia (GO). Mais tarde, Tia Neiva ingressou na Alta Magia de Nosso Senhor Jesus Cristo. Em 1964, mudou-se para Taguatinga, onde funcionou a Ordem Espiritualista Cristã. Naquele ano, foi internada com uma tuberculose. Após longa busca, Tia Neiva e seu grupo chegaram a Planaltina, em 9 de novembro de 1969, onde fundou o Vale do Amanhecer. Nos anos 1970 e 1980, a doutrina chamou a atenção do país.
Conhecido como local de tratamento espiritual, mas também de visões e previsões, o Vale do Amanhecer atraía olhares e adeptos curiosos. Tia Neiva recebia políticos e personalidades e costumava ser convidada para fazer previsões em programas de televisão. Após a sua morte, em 1985, o interesse pelo local diminuiu. Com o crescimento urbano, o que era uma comunidade isolada acabou por se mesclar a cidades vizinhas e a outros grupos religiosos.