Miguel Lucena
A morte do professor José Afonso da Silva, aos 100 anos, encerra um ciclo raro na história brasileira: o de um intelectual cuja influência sobreviveu às mudanças de regimes, às transformações do Estado e às sucessivas gerações de juristas. Com ele, despede-se não apenas um dos maiores constitucionalistas do país, mas o mestre que ensinou o Brasil a levar a Constituição a sério.
Autor de Curso de Direito Constitucional Positivo, obra que se tornou bússola obrigatória nos tribunais, nas universidades e nos parlamentos, José Afonso transformou o estudo da Constituição em disciplina sólida, rigorosa e, sobretudo, compromissada com a democracia. Seu legado mais citado — a teoria da eficácia das normas constitucionais — revelou ao país que a Constituição não é ornamento, mas norma viva, dirigida ao intérprete e impositiva para o poder político. Ao distinguir eficácia plena, contida e limitada, ele deu precisão ao que antes era nebuloso e permitiu que direitos fundamentais fossem tratados como comandos jurídicos e não meras promessas programáticas.
Homem de postura simples, mas de pensamento rigoroso, José Afonso sobreviveu a ditaduras, assembleias constituintes e crises institucionais sem jamais se afastar do compromisso com a força normativa da Constituição. Para ele, a Carta de 1988 não era concessão graciosa, mas instrumento de cidadania, capaz de transformar a realidade social e limitar os abusos do poder.
Seu centenário, alcançado com lucidez admirável, já era celebração de uma vida inteira dedicada ao Direito. Agora, sua morte impõe ao país um luto que é também reflexão: como manter, em tempos de polarização e de ameaças ao Estado de Direito, o respeito pelo pacto constitucional que ele tanto defendeu?
José Afonso da Silva deixa vasta obra, incontáveis discípulos e a certeza de que o constitucionalismo brasileiro é maior graças a ele. Sua ausência pesa, mas seu pensamento permanece — firme como cláusula pétrea, permanente como o compromisso democrático que orientou toda sua trajetória.
