
Miguel Lucena
O presente artigo examina a metáfora da “teoria do boi fatiado”, evocada pelo ministro Flávio Dino no julgamento do Núcleo 1 dos Atos Golpistas perante o Supremo Tribunal Federal. Busca-se compreender o alcance hermenêutico da expressão, bem como suas implicações no processo penal, à luz da jurisprudência nacional e internacional.
A metáfora do “boi fatiado”, apresentada pelo ministro Flávio Dino, revela-se pertinente para o debate sobre a valoração da prova no processo penal brasileiro. Segundo a imagem, ao dividir o boi em pedaços e analisar cada parte isoladamente, perde-se a visão do conjunto, o que pode levar à negação da realidade probatória. O tema se torna central no julgamento dos Atos Golpistas, em que a defesa dos réus sustenta que atos fragmentados seriam incapazes de configurar o crime de tentativa de golpe de Estado.
O Código de Processo Penal, em seu art. 155, determina que o juiz forme sua convicção “pela livre apreciação da prova produzida em contraditório judicial”. A doutrina e a jurisprudência consolidaram o entendimento de que as provas devem ser examinadas em conjunto, evitando-se conclusões parciais que comprometam a verdade processual.
Casos paradigmáticos, como a Ação Penal 470 (Mensalão), revelaram a necessidade de observar a engrenagem dos fatos e não apenas movimentações isoladas. O Supremo já reiterou, em decisões sobre organizações criminosas, que interceptações, documentos e testemunhos, somados, constituem quadro suficiente para imputação penal.
Nos Estados Unidos, a aplicação da RICO Act exige a consideração do padrão de conduta, não de atos fragmentados. Na Itália, o Maxiprocesso contra a máfia (1986–1992) demonstrou que extorsões e homicídios isolados só faziam sentido como manifestações de uma estrutura criminosa. Em Nuremberg, a Corte rejeitou a alegação de insignificância individual dos atos, reconhecendo o plano comum criminoso.
A teoria do boi fatiado alerta contra a falácia de concluir que, por nenhum pedaço ser o boi inteiro, o boi não existe. A interpretação deve respeitar o devido processo legal, descartando provas ilícitas, mas sem perder a visão sistêmica do conjunto probatório. Assim, garante-se tanto a responsabilização efetiva quanto a isonomia entre os réus.
A metáfora utilizada por Flávio Dino sintetiza uma advertência hermenêutica de grande relevância: não se pode fatiar a realidade processual a ponto de desconstituir sua evidência. O processo penal deve privilegiar a análise global, em consonância com o livre convencimento motivado e a busca da verdade real. Nos Atos Golpistas, a aplicação dessa teoria reforça a compreensão de que condutas aparentemente autônomas compõem, na realidade, uma tentativa articulada de abolição do Estado Democrático de Direito e de golpe de estado.