
Miguel Lucena
Advogado, jornalista e poeta popular
Começaram pelo braço, depois a bolsa e, agora, a bengala. Aos poucos, vão desfazendo Augusto dos Anjos, como se quisessem reescrever o destino que ele próprio previu. O poeta do Eu, feito de mármore e versos, está sendo reduzido à condição de seu próprio poema: uma ruína.
A estátua, que repousa nos jardins da Academia Paraibana de Letras, em João Pessoa, nunca imaginou que sofreria o mesmo desmanche que os ossos dos séculos. Mas o verme – esse operário das ruínas, esse que devora concreto e decência – parece ter encontrado novo ofício. Se antes roía olhos na frialdade inorgânica da terra, agora se dedica ao desmantelamento de poetas imortalizados.
O furto da bengala é a metáfora final: Augusto, que já andava torto sob o peso da própria existência, agora nem se apoia mais. Não lhe bastava a melancolia cósmica dos versos, o destino de ser um monstro de escuridão e rutilância, era preciso que a realidade confirmasse sua profecia.
Aos poucos, os ladrões o despedaçam, sem se dar conta de que não há como roubar-lhe a essência. Podem levar-lhe a bengala, a bolsa, o braço. Mas não arrancam os versos. Não silenciam a angústia que reverbera, século após século, como um grito fossilizado na pedra.
Talvez seja um ritual sem consciência. Talvez seja apenas a sina de um país que não cuida de seus poetas, nem de suas estátuas. Talvez seja apenas o verme, que segue seu trabalho sem nunca entender que algumas coisas não se apagam, nem mesmo quando viram pó.