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Por ALDO LOPES
Quase matei Hildeberto de inveja quando lhe disse na última quinta-feira que, por volta das 15h30m, acabara de receber o livro Lembrar para não esquecer, das mãos de Tião Lucena, o próprio, em carne e osso, essa lenda viva. O encontro deu-se num supermercado na Estrada de Cabedelo, e ainda tive a honra de dois dedos de prosa com Cacilda, companheira dele, sobre a fortuna que a gente gasta na busca de uma alimentação saudável. Trocamos receitas e segredos culinários e me senti uma Ana Maria Braga em pleno calor tropical da melhor cidade do mundo para se viver. Enquanto isso, Tião me olhava de viés, o bucho emoldurado pelas alças de um suspensório, presente que lhe dera Abelardinho Jurema, seu amigo.
Há vários tipos de livros de memórias. Em Pedro Nava, autor de Baú de Ossos e Galo das Trevas, o texto se alimenta da ficção e da poesia para turbinar as reminiscências, e, no final, entregar uma literatura surpreendente e de qualidade excepcional. Graciliano Ramos conta em Memórias do Cárcere os horrores da ditadura do Estado Novo no presídio de Ilha Grande, enquanto Fernando Gabeira com o seu O Que é isso Companheiro narra as atrocidades da ditadura instaurada a partir de 1964, golpe militar implementado pelos “patriotários” fascistas da época. Já o livro das memórias de Tião traz recortes importantes e decisivos de sua vida, e são a um só tempo lembranças comoventes, hilárias, românticas, afetivas e por vezes docemente fesceninas, sobretudo as da fase em que ele se empenha na reconstituição de episódios da juventude, quando “era metido a bonito, tinha os cabelos longos, usava barba comprida, andava sempre vestindo calça boca de sino e calçando sapato cavalo de aço”.
O poeta Sergio de Castro Pinto, no prefácio, destaca que a história de Tião não é composta apenas por ele. Sua escritura traz o concurso de outras pessoas, aquelas que povoaram sua infância, sua adolescência, e sua idade madura. Para o criador de Domicílio em Trânsito “não existe memória sem a participação dos outros, sem que se leve em conta o que consideramos como memórias exclusivamente nossas, incorporadas ao nosso património pessoal, algumas vezes são memórias ou lembranças dos outros, distorcidas e adequadas ao sabor de nossas conveniências e idiossincrasias”. Disse tudo e não deixou quase nada para o enigmático escriba 1berto de Almeida que vai buscar em O Jogo da Amarelinha, de Júlio Cortázar, semelhança com a obra de Tião Lucena no que diz respeito à estrutura narrativa descontínua. Essa ausência de linearidade, sustenta Almeida, nos permite iniciar a leitura de qualquer página do livro.
Importa, sim, penetrar no universo de Tião Lucena e se deleitar com suas aventuras e desventuras, seu instante de febre, sua gula em jejum, seu terno de vidro e sua condição de natimorto, diagnóstico das parteiras que assistiram dona Emília, mas o olho clínico de retratista do pai viu uma remota possibilidade de vida nos olhinhos revirados do infante que mais tarde se chamaria Sebastião, nome de pia escolhido pelas rezadeiras do Cancão em pagamento de promessa. Desde cedo, o pai ensinou-lhe o caminho da roça, mas o queria bacharel.
Tião foi muito mais que um bacharel, não sem antes se submeter ao mais fuderoso teste de sobrevivência, um périplo por uma ruma de ofícios sem futuro: barraqueiro, músico, vendedor de pão, picolé, alfenim, pirulito, foi coroinha, passador de bicho, estudou no Ginásio, fez o curso de datilografia e, achando pouco, inventou de pedir esmolas por molecagem numa semana santa qualquer do passado e levou uma camada de pau de seu Miguel. Para completar seu invejável currículo, o autor de Lembrar para não esquecer exerceu a doce profissão de dançarino. Era ele, Zé de Lourenço e João de Carlota, numa época em que não mais se valiam dos recursos da munheca, então resolveram pôr em prática suas habilidades de encoxadores de moças, três bambas em matéria de fornicação relâmpago pelos becos escuros da cidade. Por fim, em seu invejável currículo figuram ainda as funções de apontador da emergência, servidor público, soldado do Exército, ator de teatro, radialista, repórter, advogado, juiz classista, secretário de comunicação e procurador do Estado.
Nesse mundo chato do politicamente correto, Tião soçobrou. As “vítimas” mais importantes do seu vasto anedotário estão hoje protegidas por lei, e qualquer deslize ou graça que se faça, é processo na moleira. Ciente disso, nosso herói tratou de se precaver. Outra manobra: colocar nomes fictícios em certos personagens para não ter problemas com a lei e poder dizer que moça fulana de tal tinha “o sorriso colgate, olhar de onça, dois lindos peitos aflorando da titela e um par de coxas que deslumbrava os olhos e faziam a festa dos amantes do pecado solitário”. Ou então do homem que morreu mijando: “Cada mijada enchia uma lata de querosene Jacaré de 18 litros”, isso num tempo em que quando não tinha dinheiro para frequentar os bares e os lugares chiques da cidade, o negócio era “fugir para o cabaré de Estrela, aproveitando a sombra conivente do beco do colégio das freiras, ali onde Antônio Coxim, de saudosa memória, mandou uma alma do outro mundo tomar no cu”. São textos e tiradas geniais.
Ainda tem os arroubos de desobediência civil materializados no desejo de meter a faca no bucho do cabo atrabiliário que enchia seu saco e o botava para lavar os banheiros da caserna. A experiência do Exército foi um horror, mas cumpriu seu dever cívico. Quando foi morar na capital da Paraíba, ele próprio se sentia um verdadeiro “tai de faca” e tinha vários apelidos: meia cuia, Tuta de Seu Miguel e Bastião, este preferido de Paulo Mariano. Logo no início foi morar na torre, numa república, ali onde Bibiu seu irmão “ia tomar café da manhã ao lado da coroa e seus filhos e o deixava com a margarina sebenta e o pão de ontem, com o banho de cuia e com aquele cagador horroroso de um buraco cavado no cimento que a gente usava e depois despejava água para ajudar na descida”. O escatológico e as referências a excrementos acompanharam o repórter Tião Lucena até à Granja Santana, residência do governador, onde comeu a feijoada institucional que teve o poder letal de esvaziar as redações no dia seguinte. Os profissionais de imprensa ficaram em casa amargando o coro uníssono da flatulência e da caganeira.
O dado escatológico, a ironia, o fescenino, e até mesmo o grotesco em certas situações despadronizam a narrativa memorialista, quase sempre autobiográfica, voltada direta ou indiretamente para a celebração dos feitos dos seus autores. Sebastião Florentino de Lucena nunca se preocupou com isso, nunca reivindicou para si uma estátua, e seu desejo é se manter longe dos holofotes e dos buffets sociais. Ele foi capaz de “estragar” o idílio romântico e dominical autorizado pelos pais da moça, como na página 111, quando se transformou no Soldado Lucena, número 820, da 5ª Companhia de Infantaria do Exército, sediada em Recife. “A mocinha cochichava em meu ouvido, aproveitando o cochilo dos velhos depois do almoço: — Toque uma siririca em mim! E lá ia o soldado infante aprendendo a usar o dedão da safadeza, o mesmo dedão recomendado pelo tenente Gomes para ficar estirado na costura da calça em posição de sentido”.
Dizer o quê? Tirem os puristas da sala, tirem os falso-moralistas “defensores” da família, o pessoal da extrema-direita, os “patriotários, tirem da sala os que se vestem com a bandeira e vão para a frente dos quarteis pedir intervenção militar. Desocupem a sala quem não gosta de boa literatura, quem não tem apreço pelo escritor verdadeiro que chuta o pau da barraca, que subverte as fórmulas estabelecidas por este museu de grandes novidades, como dizia Cazuza, que desafina o coro dos contentes, na fórmula do anjo torto e gauche na vida do poema de Carlos Drummond de Andrade. A única consagração que ele almeja é a dos leitores, e isso Tião Lucena tem demonstrado ao longo de sua vida de jornalista e escritor.
Um homem só é pouco para tantas peripécias e diabruras. É preciso ter algo de o Grande Mentecapto, personagem de Fernando Sabino, outro tanto de João Grilo, de O Auto da Compadecida, de Ariano Suassuna, e até do Menino de Engenho, de Zé Lins do Rego. O romancista paraibano de Pilar, quando levado pelo tio para estudar na capital, lembra daquele menino Sérgio, de O Atheneu, que chegava ao colégio com a alma cheirando a virgindade. “Eu, não, era sabendo de tudo e adiantado nos anos que atravessava as portas do meu colégio, menino perdido, menino de engenho”. Tião Lucena também é perdido. E o escritor precisa dessa pecha em sua biografia. Ele há de preferir “o lirismo dos loucos, o lirismo difícil e pungente dos bêbados, o lirismo dos clowns de Shakespeare, na dicção revolucionária e subversiva de Manuel Bandeira. Tião Lucena jamais será um escritor almofadinha, um fofinho engravatado. É preciso que lembremos sempre disso. Para não esquecer.