CRÉDITO, VITOR SERRANO/BBC. Legenda da foto, Sem poder ir à escola por conta da seca, netos de Francisca precisam aprender em casa
- Author, Vitor Tavares e Vitor Serrano
- Role, Enviados especiais da BBC News Brasil a Manaquiri (AM)
- 25 outubro 2024
A pescadora Francisca Mariano da Silva, 61 anos, tem acordado todos os dias às 3h para estudar o que os netos precisam aprender.
Antes de eles se levantarem, numa casa às margens do rio Solimões, no Amazonas, Francisca já leu apostilas, reviu o material das aulas da educação de jovens e adultos (EJA) e ficou pronta para ensinar.
“Eu sentia que precisava ajudar, porque chegava uma tarefa deles e eu não conseguia mais acompanhar”, explica Francisca, que frequentou a escola até a quinta série e, há 4 meses, voltou a estudar.
Por mais de um ano, a avó é a professora possível para Glória, de 10 anos, e Davi, de 12, em Manaquiri, cidade a 150 km de Manaus que tem sido fortemente afetada pela maior seca já registrada na Amazônia brasileira.
Os rios que levam crianças e professores de comunidades ribeirinhas e rurais às escolas secaram, e 60% dos mais de 4,4 mil alunos estão sem frequentar a sala de aula numa cidade que já tem registrado indicadores de educação preocupantes.
Manaquiri foi a cidade brasileira com menor nota no Índice de Desenvolvimento da Educação Básica(Ideb) para os anos iniciais do ensino fundamental em 2023, divulgado neste ano: apenas 2,5, numa escala que vai até 10.
Nem todas as cidades ou escolas são avaliadas no índice do Ministério da Educação (MEC), por não atingirem um número mínimo de alunos.
Nestas eleições municipais, a BBC News Brasil visitou municípios que estão em primeiro e último lugar em rankings de indicadores sociais para investigar o que um país desigual como o Brasil pode aprender com seus extremos.
Além de Manaquiri, a reportagem foi à cidade melhor colocada no ranking do Ideb – Pires Ferreira, no Ceará. Outra equipe visitou os municípios com melhor e pior colocação no Índice de Desenvolvimento Humano — São Caetano do Sul (SP) e Melgaço (PA) (leia aqui).
Em 2024, os alunos de Manaquiri que estão em casa por conta da seca têm recebido tarefas e alimentos enviados pela escola — mas, fundamentalmente, têm dependido do conhecimento da família e de uma conexão de internet (muitas vezes instável) para tirar dúvidas com os professores.
Mesmo os que moram perto da escola, como os netos de Francisca, estão com aulas suspensas. Segundo a prefeitura, professores também estão isolados e os que podem chegar à escola precisam preparar o ensino remoto.
Francisca percebeu que o novo cenário longe da escola — que tem se repetido desde os anos de pandemia — iria prejudicar o futuro de seus netos.
Ela saiu batendo de porta em porta na Vila do Janauacá, comunidade de Manaquiri onde se chega apenas de barco, para encontrar ao menos 15 jovens e adultos que gostariam de retomar a educação numa turma de EJA na escola local. E conseguiu.
“Eu já aprendi matemática, português e até um pouquinho de inglês. O bom é que a gente ensina eles e aprende junto”, diz Francisca, ela própria em ensino remoto no EJA desde setembro.
Mas a pescadora não acha que o esforço que faz deveria ser regra. “O certo é estar na escola”, conta.
“Dentro de sala de aula é uma coisa, a aula remota é outra. O que está acontecendo agora é que vou ter que forçar mais a minha mente para ajudar eles”.
Escolas vazias, alunos em casa
A BBC News Brasil foi até a escola municipal na Vila do Janauacá numa quarta-feira no final de setembro — e encontrou o prédio vazio, apenas com algumas funcionárias.
Em uma chamada rápida de grupo com alunos do sexto ano via Whatsapp, a professora Cristiane Ribeiro, sentada em frente a dezenas de cadeiras vazias, tirava dúvidas dos estudantes sobre teorias econômicas.
“A gente tem trabalhado para que as atividades e todo o conteúdo cheguem às casas dos alunos, mas a gente sabe que não é a mesma coisa”, diz a professora.
A população amazônica está acostumada ao processo de cheia e seca dos rios ao longo do ano — mas não na intensidade que tem acontecido, segundo os moradores e cientistas.
De acordo com o Centro Nacional de Monitoramento de Desastres Naturais (Cemaden), a seca no Brasil entre 2023 e 2024 é a “mais intensa da história recente” — sendo a Amazônia uma das regiões mais afetadas.
Os rios da região registraram neste ano o menor nível da história, como o Negro, em Manaus, o Solimões, em Tabatinga (AM), e o Madeira, em Porto Velho (RO).
À frente da disciplina de geografia, Cristiane costuma explicar aos alunos que a crise climática visível no quintal de casa é resultado de modificações que os seres humanos fizeram e que a “natureza está tentando encontrar o seu equilíbrio”.
Mas, mesmo em época quando não há grandes cheias ou secas, a educação em Manaquiri já é um desafio.
Alguns alunos passam horas no barco, outros precisam caminhar na mata fechada para encontrar o barqueiro que os vai levar à escola.
“Então eles chegam cansados, fadigados de um sol escaldante como é aqui do nosso Estado, então é complicado e cansativo”, conta a professora Cristiane.
“Eu creio que os demais Estados não sabem da nossa realidade. Aqui as dificuldades são maiores. As pessoas precisam entender que não é só o número pelo número [o Ideb]. Por trás desse número, existe um grande desafio que essa região enfrenta”.
A cerca de 30 minutos de barco num braço do rio Solimões que está cada vez mais seco, a família de Gisele Amorim tenta encontrar saídas para o tempo ocioso das crianças.
“Tenho até medo de eles ficarem viciados em celular, na televisão, porque é muito desenho. É triste ver a situação da criança sem estar na escola”, diz Gisele, grávida de seis meses.
Com os rios quase totalmente secos, o transporte escolar não consegue navegar — em alguns pontos, apenas pequenas canoas em que só cabem duas pessoas.
“Assim o ensino fica mais para trás, em vez de ir pra frente”, diz Gisele.
Num município ribeirinho e tão sensível aos fenômenos climáticos como Manaquiri, seria necessário um calendário específico em que as férias estudantis ocorram em períodos de impossibilidade de acesso, explica Fabiane Garcia, doutora em educação e professora na Universidade Federal do Amazonas (Ufam).
“Eu vim da zona rural daqui do Amazonas, sei como é a realidade. O nosso calendário tem que ser diferente da zona urbana e em muitos lugares isso já acontece”, diz Garcia.
Cidades como Tefé (AM) e escolas em áreas ribeirinhas de Manaus são algumas que preveem o sobe e desce das águas na hora de estabelecer datas escolares.
A Prefeitura de Manaquiri disse que tentou se antecipar ao problema de seca com aulas aos sábados e feriados para adiantar conteúdos, por exemplo. Mas argumenta que a estiagem começou mais cedo que o ano anterior, atrapalhando a programação.
“Nós não imaginávamos que a seca ia ser tão rápida assim, ela se adiantou muito esse ano. É complexa demais a questão do calendário climático aqui”, diz o prefeito Jair Souto (MDB), que esteve à frente da prefeitura em quatro ocasiões e elegeu seu sucessor, Nelson Nilo (MDB), nestas eleições.
O prefeito diz que o ideal é as crianças estarem de férias em outubro — começando o ano letivo logo em janeiro. Não há previsão para a volta às aulas ainda neste ano.
Problemas além da seca
Mas se as salas de aula vazias e a impossibilidade de locomoção são um sinal claro dos desafios de uma cidade como Manaquiri, outros problemas também se acentuam em áreas rurais do Norte do Brasil.
Na cidade amazonense, apenas 75% dos professores do ensino fundamental têm ensino superior —– um número abaixo da média nacional, de quase 87%, segundo dados do Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais Anísio Teixeira (Inep).
“Tem muita professora boa que trabalhava com a gente, mas, quando tem oportunidade de ser aprovada lá em Manaus, é a primeira coisa, porque lá paga melhor”, diz Júnior Amorim, professor do sexto ano numa escola no centro de Manaquiri.
Para o professor, os alunos de Manaquiri são prejudicados ainda pela falta de material que dinamize as aulas e de uma parceria mais sólida entre as escolas e as famílias: “Não adianta só quadro e caneta piloto”.
A professora Cristiane Ribeiro, da Vila do Janaucá, explica ainda que, em algumas comunidades distantes, há professores que estudaram apenas até a quarta série e já são colocados dentro de uma sala de aula.
De acordo com o prefeito Jair Souto, tem sido difícil atrair profissionais qualificados para Manaquiri, especialmente para zonas rurais. “Esse é o grande desafio no Brasil e nas áreas remotas”, diz o político, prometendo um sistema de aumento de remuneração com base nos resultados de cada professor — algo a ser aplicado na gestão seguinte, de seu sucessor.
Souto também reclama da forma como a educação é financiada para os municípios amazônicos.
Assim como a grande maioria dos municípios brasileiros, Manaquiri depende majoritariamente de recursos repassados pelo governo federal ou estadual.
Na área da educação, o dinheiro chega às cidades principalmente através do Fundo de Manutenção e Desenvolvimento da Educação Básica e de Valorização dos Profissionais da Educação (Fundeb).
Criado em 2007, o fundo tem papel fundamental na redução de desigualdades entre as regiões, já que redistribui recursos nacionais com base no número de alunos — e não levando em conta o que determinado Estado arrecadou, por exemplo.
Mas o prefeito diz que Fundeb tem sido insuficiente, já que os recursos repassados não levam em conta que Manaquiri gasta mais no transporte (em barcos e por longas distâncias), por exemplo.
A cidade ainda precisaria, argumenta Souto, de mais recurso por aluno, já que há escolas que precisam ser mantidas em comunidades ribeirinhas e que funcionam com pouquíssimas crianças.
“O Brasil precisa entender a complexidade da região Norte e fazer políticas específicas para a região. Nós não somos iguais”, diz.
O Norte é a região proporcionalmente mais jovem do Brasil, um país que tem visto sua população economicamente ativa diminuir em relação aos idosos.
Isso quer dizer que a forma como os jovens estão se formando vai influenciar o futuro do país, explica o economista Naercio Menezes Filho, professor do Insper e da Universidade de São Paulo.
“Como teremos menos jovens, a gente precisa ter gente cada vez mais produtiva. E um dos principais fatores para aumentar a produtividade é a qualidade da educação”, diz Menezes Filho, especialista no desenvolvimento da primeira infância.
“Então é preocupante que isso não esteja acontecendo na região que a gente tem a maior concentração de juventude”, completa.
O MEC reconheceu, em nota, que é necessário atacar as desigualdades educacionais no Brasil e disse que está implementando novos critérios no Fundeb para que cidades que tenham alunos mais pobres possam receber mais recursos.
Já o Fundo Nacional de Desenvolvimento da Educação (FNDE), responsável pela gestão do Fundeb, prometeu um olhar para o que chama de “custo amazônico”, por meio de um programa voltado para auxiliar no transporte de estudantes da zona rural e de regiões mais afastadas.
No entanto, até o momento, ainda não há um orçamento definido para as mudanças, diz o FNDE.
O que o Ideb não mede
O Ideb é calculado com base em dois indicadores: a taxa de aprovação escolar; e as médias de desempenho nos exames aplicados pelo Sistema de Avaliação da Educação Básica (Saeb), nos quintos e nono ano do ensino fundamental e terceiro ano do ensino médio.
Ele é considerado o principal indicador da educação brasileira e consegue ligar alertas.
Mas será que, numa cidade como Manaquiri, o índice é capaz de captar tudo?
Para a educadora Fabiane Garcia, da Ufam, as crianças ribeirinhas de áreas rurais na Amazônia têm uma leitura de mundo e vivências cotidianas que não são vistas em resultados de provas.
“Em termos de leitura e cálculo, objetivamente, elas estão falhando. Mas não podemos dizer que não esteja ocorrendo aprendizado. Talvez seja uma aprendizagem que esses próprios modelos não captam”, diz a professora.
Em escolas indígenas do Amazonas, exemplifica Garcia, os professores são da própria comunidade e dão aulas na língua nativa. Muitas vezes esse educador não tem um curso de graduação, e os resultados de provas de português podem não ser os esperados.
“Isso pode ser visto no Sudeste como uma coisa ruim, mas a gente precisa entender que isso é bom porque no fundo a gente está nesse processo de manutenção e resgate da cultura, da língua”, diz.
Na escola da Vila do Janauacá, uma das salas é dedicada a um pequeno museu com artefatos arqueológicos que as famílias encontram ali mesmo. São potes de cerâmica e vasos de civilizações antigas e que fazem parte do dia a dia das aulas.
O Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (Iphan) informou que já fez uma visita ao colégio para catalogação dos itens, em meio ao recadastramento de sítios arqueológicos na região.
“A gente mostra que outros povos estiveram aqui antes da gente”, comenta a professora Cristiane, apontando os objetos históricos que as crianças encontraram, literalmente, no quintal de casa.