Especialista analisa os números e alerta para os perigos da ingestão exagerada; homem que venceu o vício conta sua história de superação
Imagem: Hugo Barreto/Metrópoles
Pelo menos 130 pessoas morreram vítimas do consumo exagerado de bebida alcoólica no primeiro semestre de 2024 no Distrito Federal. É o que apontam os dados fornecidos ao Metrópoles pelo Ministério da Saúde (MS).
O número representa 1,7% das mortes relacionadas ao álcool do país neste ano. O DF é a segunda unidade da Federação (UF) com mais casos no Centro-Oeste — atrás apenas do Goiás, com 330 — mas fica em 18º no ranking das 27 UFs. A pasta frisa que os índices podem sofrer alterações.
De acordo com o último Censo Demográfico do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) de 2022, a capital federal tem 2.817.068 moradores. Num recorte por 100 mil habitantes, as 130 mortes por consumo excessivo de bebida alcoólica em 2024 representam 0,13% da população.
Ressalta-se que, em 2023, 294 pessoas faleceram devido ao problema. O boletim epidemiológico mais recente da Secretaria de Saúde (SES-DF) sobre o tema, referente ao ano passado, mostra que o Distrito Federal é a segunda unidade da Federação com maior ingestão exagerada de bebidas alcoólicas por habitante: 25,7% dos adultos beberam quatro ou mais doses em uma mesma ocasião — índice classificado como abusivo pelo Ministério da Saúde. Brasília ficou atrás apenas de Salvador (BA), com 28,9% dos adultos bebendo de maneira não moderada.
Os dados exigem atenção, visto que o alcoolismo é uma doença considerada silenciosa e que age lentamente. É o que indica o médico psiquiatra Leonardo da Cruz. “O quadro é bastante expressivo, tratando-se de uma causa plenamente evitável”, pontua.
O médico psiquiatra ressalta que os homens são a grande maioria das vítimas das doenças relacionadas ao alcoolismo. Os óbitos costumam ocorrer em jovens de 20 a 39 anos e em pessoas mais vulneráveis, segundo o especialista. “A taxa de óbitos é quase seis vezes maior em relação às mulheres”, frisa.
Leonardo alerta: beber demais causa consequências negativas “em vários aspectos da vida”. “Existe prejuízo no trabalho e estudo, além de perda de oportunidades e vínculos sociais. Também pode ocorrer agravamento dos transtornos psiquiátricos associados, tais como a depressão e o transtorno bipolar, além da exposição a maiores situações de risco a si e a outros, como acidentes automobilísticos, violências e ataques à própria vida”, descreve.
Ainda sobre as consequências negativas, o psiquiatra ressalta que o álcool está associado a cerca de 200 doenças. “Usuários crônicos costumam apresentar maior risco de doenças cardiovasculares, cirrose, demência e até câncer. É realmente uma substância com repercussões para todos os órgãos.”
Existe consumo recomendado?
Embasado em recomendações da Organização Mundial de Saúde (OMS) e publicações em grandes revistas científicas, Leonardo acredita que “não há consumo seguro de álcool”. “Mesmo o que antigamente se considerava leve ou moderado está associado a prejuízos na saúde”, diz.
Ainda assim, o profissional classifica: “o consumo de álcool em grande risco pode ser definido em homens a partir de 15 doses por semana ou cinco doses em um único dia. Esse limite é menor para mulheres, sendo de oito doses por semana ou três em uma única ocasião. Uma dose padrão de bebida alcoólica no Brasil equivale a 14 gramas de álcool puro, o que corresponde a 350 mililitros de cerveja, 150 ml de vinho ou 45 ml de destilado.”
Sobre os motivos que levam uma pessoa a beber exageradamente, o médico cita três pontos a serem observados: perfil, círculo de convivência e predisposição genética. “Pessoas com traços de timidez, ansiedade, depressão ou em situações de isolamento e solidão podem buscar o álcool para aliviar o desconforto ou promover desinibição; é possível também que haja estímulo do ambiente e construção cultural do indivíduo para que haja consumo de bebida; além disso, existe um importante fator de predisposição genética para a dependência, e pessoas com familiares com problemas com álcool ou que não se intoxicam com facilidade devem ficar atentas.”
História de superação
O segundo ponto citado pelo médico psiquiatra foi o que levou o gestor público César Lemes a cair no vício. “Meu uso de álcool e outras drogas teve início entre os 16 e 17 anos. Comecei a beber e usar drogas para ser aceito pelos “amigos” e para fazer parte da turma que bebia”, relata. “Quando eu bebia, não conseguia parar, por obsessão e compulsão. Entendi posteriormente que isso são espécies de núcleos da doença”, prossegue.
César sofreu com o vício por quase 20 anos. Ele tinha ciência de que bebia muito, porém, achava que poderia parar a qualquer momento. “Mas a doença é progressiva, incurável e de terminação fatal”, considera. “Uma década depois de começar a beber, conheci o crack.”
“Cheguei ao ponto de total degradação. Eu só vivia para usar — e usava para viver — não só o álcool, mas toda e qualquer substância que alterasse minha mente, meu humor e meu estado espiritual.”
Até que, em 20 de junho de 2011, César aderiu ao método dos Doze Passos, utilizados por algumas casas de reabilitação, que compreendem admitir o problema e apegar-se à fé. Desde então, ele nunca mais consumiu álcool e drogas.
Em 2019, o homem se tornou servidor público da Secretaria de Justiça e Cidadania do Distrito Federal (Sejus-DF), trabalhando na Subsecretaria de Enfrentamento às Drogas (Subed) e inspirando outras pessoas com sua história de superação. “Estou reinserido na sociedade. O dinheiro que outrora ia para o bar e para as drogas, hoje vai para dentro de casa. Posso comprar um tênis para minha filha e presentear minha esposa, pagar as contas e viver com dignidade e responsabilidade. Recuperei minha alegria!.”
Amparo do poder público
Desde 2021, a Secretaria de Justiça e Cidadania do Distrito Federal (Sejus-DF) desenvolve o programa Acolhe DF, que possui o objetivo de apoiar todas as pessoas em situações relacionadas ao uso de álcool e outras drogas, bem como os familiares delas. O programa realiza atendimentos individuais para os dependentes e seus familiares.
“O Acolhe DF é um programa pioneiro que busca resgatar a dignidade e a esperança de indivíduos que lutam contra a dependência. A abordagem é centrada na pessoa, oferecendo suporte psicológico, social e de saúde para uma recuperação sustentável”, explica a secretária de Justiça e Cidadania, Marcela Passamani. “Por meio dele, é oferecido um caminho que integra cuidados de saúde e reinserção social, focando na transformação de vidas”, completa.
Atualmente, a Sejus disponibiliza 160 vagas para acolhimento em comunidades terapêuticas, sendo 135 para homens e 25 para mulheres. Essas são entidades privadas, sem fins lucrativos, que realizam o acolhimento de pessoas com transtornos decorrentes do uso, abuso ou dependência de substâncias psicoativas, em regime residencial transitório e de caráter exclusivamente voluntário (espontâneo).
Para agendamento de atendimento ou informações sobre o Acolhe DF basta entrar em contato por meio de um dos telefones (61) 2244-1127, (61) 2244-1132 ou (61) 98314-0639 (WhatsApp) ou, presencialmente, na sede da Sejus-DF. Para informações a respeito do serviço de acolhimento em comunidades terapêuticas, o telefone é (61) 98314-0745.
Já a Secretaria de Saúde do Distrito Federal (SES-DF) recomenda ao cidadão que precisa de ajuda visitar uma das 175 Unidades Básicas de Saúde espalhadas pelo DF. Ali, o paciente passará a ser acompanhado por profissionais da Estratégia Saúde da Família, como médicos, enfermeiros, psicólogos, nutricionistas, farmacêuticos, dentre outros especialistas.
O paciente pode passar por consultas e atividades em grupo, incluindo as Práticas Integrativas em Saúde, como terapia comunitária e yoga. A Unidade Básica de Saúde também fornece medicação e faz o acompanhamento necessário de várias outras doenças que possam ter sido desenvolvidas em decorrência do abuso de álcool, cigarro ou outras drogas. Para ser atendido, basta levar documento de identificação e comprovante de residência.
A pasta ressalta ainda que atua de maneira preventiva na promoção da saúde; na atenção integral à saúde; na vigilância em saúde; na prevenção de doenças e agravos; e na educação permanente e continuada.
Fonte: Metrópoles