Resíduos de fábricas de roupas são usados para alimentar fornos manejados por trabalhadores endividados.
Pesquisadores documentaram o impacto na saúde dos trabalhadores de olarias, que trabalham em algumas das condições mais quentes do mundo. – (crédito: BBC)
Chantrea arrasta um ventilador elétrico do tamanho de uma grande porta para dentro da câmara onde ela trabalha todos os dias.
É seu único refúgio do calor dentro da olaria, que mais parece uma tumba mal iluminada.
“É como trabalhar dentro de uma prisão em chamas”, diz a mulher de 47 anos enquanto empilha tijolos secos, que serão transferidos para um armazém.
“Pedi aos proprietários que nos fornecessem mais ventiladores. Mas eles não o farão porque isso custará mais dinheiro”.
O ventilador que ela tem bate lentamente ao ligar, até entrar em ação. Quase não cria uma brisa.
Quão quente é quente demais para trabalhar?
É uma questão para a qual os pesquisadores encontraram a resposta aqui, nas olarias do Camboja, onde as pessoas trabalham em algumas das condições de trabalho mais quentes do mundo, em oficinas abastecidas em parte pela queima de tecidos derivados de restos de roupas.
A BBC conversou com vários trabalhadores que disseram que suavam tanto durante o dia que parecia que estavam tomando um banho quente. Os desmaios também são comuns, possivelmente porque ficam desidratados.
Seus nomes foram mudados porque eles temem represálias por parte de seus empregadores.
Em um estudo inédito, pesquisadores tentaram documentar como essa exposição ao calor extremo está afetando a saúde dos trabalhadores.
Sensores especiais registaram a temperatura de 30 trabalhadores nesses fornos durante uma semana e mostraram que todos sofriam de estresse térmico, ou temperaturas centrais superiores a 38?°C. Isso pode causar fadiga, tontura, náusea e dores de cabeça.
Uma temperatura corporal saudável geralmente varia de 36,1?°C a 37,2?°C. A temperatura corporal acima de 38?°C é sintomática de febre.
Alguns trabalhadores tinham temperaturas de 40?°C, o que pode levar a insolação, resultando em convulsões, eventual perda de consciência e até morte, se não for tratada precocemente.
Um trabalhador disse aos pesquisadores que sofria de insuficiência cardíaca devido ao calor. Mas ele eventualmente teve que voltar a trabalhar porque essa era a única maneira que conhecia de ganhar a vida.
As condições são agravadas pelo aquecimento global e pelo próprio clima do Camboja – em maio passado, as temperaturas no país atingiram um novo recorde, 41,6ºC.
À medida que as temperaturas globais sobem, mesmo um pequeno aumento pode significar a diferença entre a vida e a morte para dezenas de milhares de trabalhadores de olarias em toda a Ásia.
“Uma das grandes narrativas que ouço repetidamente é que estamos todos juntos nesta [mudança climática]. Mas isso não é absolutamente verdade. Alguns de nós estão muito mais envolvidos nisso do que outros”, disse Laurie Parsons, da Universidade Royal Holloway, autora do estudo.
Roupas com vestígios tóxicos
É uma tarde úmida fora do forno, nos arredores da capital do Camboja, Phnom Penh. Lá dentro, onde Chantrea empilha tijolos, é sufocante.
Mas ela está coberta da cabeça aos pés com roupas que pendem de seu corpo minúsculo – seu único escudo contra o calor abrasador e a poeira. Se os tijolos estiverem muito quentes, a pele dela forma bolhas.
Os próprios fornos são cercados por paredes de tijolos e selados. Os trabalhadores ficam do lado de fora e alimentam a lenha através de uma escotilha para manter o fogo quente o suficiente, geralmente em torno de 1.500°C, para assentar os tijolos de argila. Quando isso acontece, eles param de alimentar as chamas. E, quando o calor parece menos insuportável, eles entram na câmara.
Não há dados sobre a temperatura média no interior dos fornos, pois o acesso dos pesquisadores é difícil. Também é difícil saber quantos trabalhadores adoecem por causa do calor.
Lesões causadas pela queda de tijolos não são incomuns, segundo Chantrea. E os trabalhadores disseram aos pesquisadores do Reino Unido que os tijolos muitas vezes os queimam, mesmo através das luvas.
Do lado de fora do forno, Kosal, pai de dois filhos, pega uma mistura de tecido, plástico e borracha e enfia na escotilha antes de fechá-la rapidamente. A fumaça preta vaza pelas frestas enquanto crianças – dele e de outros trabalhadores do forno – passam correndo.
“Estou acostumado com a fumaça preta. Não percebo mais”, diz ele. “Tenho que manter essas fogueiras acesas por 24 horas. Minha esposa e eu dividimos o trabalho entre nós.”
As crianças rastejam sobre sacos cheios de sobras de roupas – mais combustível para o forno da indústria de vestuário de US$ 6 bilhões do Camboja.
Mas o que pode inicialmente parecer uma solução para as sobras indesejadas das 1.300 fábricas de vestuário do país está, na verdade, escondendo seu próprio segredo mortal.
De acordo com um relatório de 2018 – Blood Bricks – de pesquisadores da Universidade Royal Holloway, esses restos apresentam vestígios de alvejante à base de cloro, formaldeído e amônia, além de metais pesados, PVC e resinas utilizadas nos processos de tingimento e impressão.
O relatório também descobriu que os trabalhadores das fábricas de tijolos relataram enxaquecas regulares, sangramentos nasais e outras doenças.
A filha de três anos de Kosal, com o cabelo coberto de poeira, passa por uma pilha de roupas com a marca Disney. A maioria são pijamas de flanela com imagens de Anna e Elsa de Frozen. Eles são feitos para crianças que vivem em climas mais frios.
A maioria das marcas de moda ocidentais têm códigos de conduta rigorosos para impedir que isso aconteça. Um porta-voz da Disney disse à BBC que a empresa estava investigando a reclamação e que “não tolerava as condições alegadas nesta situação”.
A BBC também encontrou marcas de calçados Clarks e H&M, entre outras. A Clarks pediu ao Ministério do Ambiente do Camboja que investigue o caso e também convidou outras empresas afetadas a juntarem forças “no trabalho em conjunto com as autoridades relevantes no Camboja para erradicar esse problema”.
A H&M reconheceu que a rastreabilidade ainda é um problema no Camboja, mas disse que tinha as suas próprias diretrizes de gestão de resíduos para garantir que resíduos de tecido não sejam utilizados como fonte de combustível por fábricas ou enviados para aterros.
Por mais tóxico ou difícil que seja o trabalho, trabalhadores como Chantrea e Kosal nunca poderão deixá-lo. Vítimas das mudanças climáticas, estão presos em um ciclo de calor.
A maioria dos que trabalham nas olarias do Camboja eram agricultores. Chantrea costumava cultivar arroz. Mas a escassez de chuvas nos últimos anos tornou difícil a obtenção de uma única colheita.
“Pedimos muito dinheiro emprestado depois das nossas colheitas terem fracassado”, diz ela.
Ela acabou migrando para Phnom Penh na esperança de encontrar um emprego para pagar os empréstimos. Mais de 2 milhões dos 10 milhões de adultos do Camboja têm microempréstimos pendentes, de acordo com a Associação Cambojana de Microfinanças.
Em média, cada um deles deve US$ 3.320 (R$ 16.380).
Essa insegurança financeira fornece mão de obra vulnerável para as olarias. Os proprietários se oferecem para pagar o empréstimo, mas, em troca, o trabalhador fica vinculado ao forno.
Muitas vezes famílias inteiras estão envolvidas com as atividades. A BBC viu crianças ajudando os pais no forno, apesar dos esforços do governo cambojano para prevenir o trabalho infantil.
“Se partirmos, temos medo de sermos detidos e presos”, diz Chantrea. “Portanto, temos de lutar aqui. Se nos pedirem para entrar no fogo, faremos até isso só para podermos ganhar mais dinheiro para comprar comida e pagar a nossa dívida.”
Mas os salários são muito baixos para que a dívida possa ser paga. Chantrea ganha 10 mil riels cambojanos (o equivalente a R$ 12) para empilhar cerca de 500 tijolos.
Com isso ela tem que pagar comida, luz e água. Sua casa é um barraco de lata na beira do forno e ela sustenta um menino que encontrou sozinho na rua e adotou. Quando estão com fome, eles procuram caracóis juntos.
Ao longo de vários anos, diz ela, sua dívida só aumentou.
Os fornos do Camboja alimentaram o boom da construção na capital. Esse processo atraiu investidores estrangeiros, incluindo o Reino Unido, que investiu bilhões de dólares no setor, segundo investigadores da Universidade Royal Holloway.
Mas à medida que Phnom Penh se eleva em direção ao céu, com inúmeras novas torres de apartamentos com ar condicionado, a cidade está deixando para trás aqueles que ajudaram a construí-la.
Laura Bicker – Da BBC News em Phnom Penh