
Arquivo pessoal
Antônio Vandir de Freitas Lima
Nasceu em 09 de novembro de 1933 na cidade de Baturité no Estado do Ceará. Baturité é uma cidade serrana de clima ameno onde nasceu o escritor Franklin Távora autor do romance O Cabeleira.
Filha de Raimundo Pereira de Freitas e Raimunda Rodrigues de Freitas viveu a infância no sítio, nadando nos açudes, andando de cavalo, cuidando da criação, comendo as frutas típicas do Nordeste; como a pitomba, o caju e a seriguela.
Apenas saindo da primeira infância teve que assumir uma responsabilidade que é destinada à vida adulta. A mãe morrera em consequência de sequelas no parto a obrigando a substitui-la na criação dos irmãos. Principalmente do recém-nascido, o Ivo, nosso querido tio Ivo que hoje mora no Rio de Janeiro.
Quando mocinha adorava sair para dançar, não perdia um forró. Magrinha, pequenininha, olhos muito vivos, cheia de agilidade e habilidades (nessa época já era uma excelente costureira, profissão que exerceu durante toda a vida de forma sazonal, mas com um certo afinco), era uma bonequinha graciosa e faceira. Mas encontrava resistência do pai. Seu Raimundo, viúvo, já estava buscando uma nova companheira, mas queria a pequena Vanda, nome com o qual ficou conhecida durante toda a vida, cumprindo com as responsabilidades domésticas.
Foi então que ela conheceu um verdadeiro galã, um soldado raso da Polícia Militar de Fortaleza; que usava um cabelo ao estilo Nelson Gonçalves. Foi amor à primeira vista. Era tanto amor que tiveram que fugir para poderem viver essa nova história em suas vidas. Foram para Brasília, onde já estavam os pais do jovem soldado, Valdir era seu nome. Corpo atlético, charmoso e inteligente, não ficou muito tempo na Polícia, com a sua mente privilegiada aprendia rapidamente vários ofícios. Mas foi como técnico em eletrônica que se destacou. Não havia nada eletrônico que ele não concertasse.
Agora casados, voltaram para Fortaleza, compraram um lote e construíram uma casa onde abrigavam cinco filhos pequeninos: na ordem do mais velho para o mais novo, Suely de Fátima, Franciso José (o Neto), Deusa Luzia, Antônio Vandir e José Alcindo. Tinham pomar no quintal e frequentavam a Praia do Futuro nos finais de semana. Mas, como todo bom nordestino, o Sul Maravilha exercia um grande fascínio. Então, mudaram-se para São Paulo.
Brasília era uma cidade recém-inaugurada, não tinha nem dez anos de existência, ainda era em certa medida um grande canteiro de obras. O pai do seu marido, o Seu Chico, foi à São Paulo implorar para que o filho se juntasse à família. Então, foram para a Capital novamente. Não tinham casa própria, chegaram a morar com a família dos pais de seu marido na Candangolândia, depois na Vila IAPI, que era uma grande invasão de terra. A sigla surgiu porque o loteamento irregular ficava ao lado do hospital do Instituto de Pensão de Aposentadoria dos Industriários.Na década de 1970, o administrador de Brasília, Hélio Prates da Silveira, resolveu remover esse assentamento; afinal ficava muito perto do Plano Piloto. Foi criada a Campanha de Erradicação de Invasões, CEI na sigla adotada; daí a cidade que surgiu foi chamada de Ceilândia.Ficaram morando junto com os sogros por um tempo. A mãe de seu marido, Luiza Aires, conhecida como Dona Lila, era uma mulher rústica e endurecida pela vida sofrida. Aos domingos, a família toda se reunia, vários irmãos, mulheres e filhos, muita bebida e tripa de porco assada…
O marido Valdir foi contratado pela empresa prestadora de serviços autorizada da PHILLIPS, que ficava no centro de Taguatinga, na famosa Rua da Caixa D’água. Então, a família passou a morar em Taguatinga Sul, na QSC 9, na rua do antigo Clube Primavera. Vilanir fez curso de culinária, aprendeu pratos refinados; também costura vestidinhos para as filhas e transformava velhas calças jeans em mochilas para os meninos levarem os livros para a escola. Estudaram todos em escolas públicas. Em 1973 nasceu o filho Romildo Cristiano e, como diz a cultura popular, o nascimento de uma criança sempre prenuncia uma boa nova. Foram contemplados na fila de espera da casa popular pelo programa chamado SHIS – Sociedade de Habitações de Interesse Social.
Muito cedo acordaram, por volta de 4 horas da madrugada, estavam muito radiantes e felizes. Vilanir fez café, misturou com leite em uma garrafa térmica. Pegou um pacote de bolacha sete-capas, entraram no fusquinha amarelo e foram buscar as chaves da casa nova. Era um sonho se realizando. A casa na QNO 5 ainda persiste até hoje e é habitada por seu filho José Alcindo e sua família cristã.
No Setor O, em 1975, nasceu a filha mais nova, Angélica, que tinha e tem a mesma vivacidade e alegria de viver da mãe Vilanir.
Mas nem tudo era flores na vida da nossa querida Vanda. O seu marido Valdir desenvolveu uma doença terrível, o alcoolismo. Vilanir sofreu violência doméstica, maus tratos, mas o amor pelos filhos e a formação católica a fazia resiliente e confiante em um futuro melhor.
A vida melhorou. O antigo soldado militar Valdir, agora era um respeitável servidor público do SNI – Serviço Nacional de Informações (atual ABIN), onde era responsável pelo setor de comunicação do órgão.
Nos Natais, Vilanir sempre fazia arroz de forno, peru assado, salpicão e algumas sobremesas. À meia noite ia a pé para a Igreja para assistir à Missa do Galo. A rua inteira seguia, como em uma procissão, passo a passo até a Igreja e todos sentiam uma vida em comunhão. Vilanir orava em plena devoção, como o faz até hoje. Seus olhos ficavam tristes, parados, fitando o nada… toda uma vida de muitas batalhas, traições e sofrimentos, mas também de momentos de extrema alegria passava como um filme em sua mente. VANDA! Gritava o marido entorpecido. E ela olhava num misto de pavor e de compaixão.
Os filhos cresceram, casaram-se, mudaram e multiplicaram. Vieram os netos e bisnetos. Agora era somente os dois como no início, aquela época em que se permitiam sonhar. Foram morar em um apartamento no centro de Taguatinga. Outra vez o problema do alcoolismo conspirava contra a sua paz e felicidade. Mas, em um dia fatídico o velho soldado deu o último suspiro. O peito explodiu, porque não suportou a pletora de sofrimentos e de amor. Vilanir chorou baixinho, de novo os seus olhos fitavam para além da cena dantesca, novamente a sua visão era interna, intensa e meditativa.
Alguns anos depois, o filho Neto também decidiu ir morar com Deus. Vítima de Diabetes, sucumbiu em plena pandemia e Vilanir não pôde estar com ele. Até hoje reclama desse momento, tem lembrança como se alguém a houvesse impedido de ter o seu filho novamente em seu seio materno. A morte do filho Neto causou apagões de memória em Vilanir; como forma de mitigar esse sofrimento que somente Maria, Mãe de Jesus saberia explicar.
Hoje faz 90 anos! A sua família tem essa tradição em ser longeva! Não se pode dizer que é triste. Não se pode dizer que é feliz. É uma mulher de seu tempo, que ficou presa no seu tempo, que mora em um passado que passeia por sua mente como um evento da semana passada. Ainda está nadando nos açudes de Baturité, ainda está cavalgando em seu cavalo malhado, ainda está dançando os forrós antigos (e os atuais!), ainda reza baixinho na Igreja, com olhos marejados. Levanta o olhar profundo, olha para o filho e diz com uma candura capaz de enaltecer os Anjos: – Só peço à Deus que me permita ficar mais um pouquinho. Eu não quero ir agora!
Antônio Vandir de Freitas Lima