Article information
- Author, Shin Suzuki
- Role, Da BBC News Brasil em São Paulo
- Twitter, @shin70
Alguns anos atrás, a ideia de “ameaça à privacidade de pensamento” estava mais para 1984, de George Orwell, e para o terreno da ficção científica distópica.
Para Nita Farahany, professora da Universidade Duke (EUA) que se especializou em pesquisar as consequências das novas tecnologias e suas implicações éticas, essa ameaça já é presente hoje e deve ser levada a sério.
A iraniana-americana lançou neste ano o livro The Battle for your Brain: Defending the Right to Think Freely in the Age of Neurotechnology(“A Batalha pelo seu Cérebro: Defendendo o Direito de Pensar Livremente na Era da Neurotecnologia”, em tradução livre, sem edição brasileira).
Mas como é possível ler o nosso cérebro? Bem, de fato ainda não existe — como na ficção — uma supermáquina que entra na cabeça de uma pessoa e entrega uma lista completa de ideias e conceitos.
Isso foi possível com a vasta quantidade de dados pessoais compartilhada em redes sociais e outros apps, que é analisada por algoritmos e depois monetizada.
Hoje as companhias de tecnologia detêm informações importantes sobre nós: quem são nossos amigos, qual conteúdo gera emoção (e, importante, que tipo de emoção), as preferências políticas, em quais produtos clicamos, por onde circulamos ao longo do dia e algumas das transações financeiras.
“Tudo isso está sendo usado por empresas para criar perfis muito precisos sobre quem somos e assim entender nossas preferências e nossos desejos”, diz Farahany em entrevista à BBC News Brasil.
“É importante as pessoas entenderem que elas já estão em um mundo onde mentes são lidas.”
Outra fronteira do nosso funcionamento interno começa a ser explorada com a popularização de smartwatches (relógios inteligentes), que reúnem dados sobre batimento cardíaco, níveis de estresse, qualidade do sono e muito mais.
Mas o avanço da neurotecnologia, com equipamentos em contato direto com a cabeça, leva tudo isso a um novo patamar, com mais dados e mais precisão.
Ela explica que sensores cerebrais são justamente parecidos com sensores de frequência cardíaca encontrados nos smartwatches ou em anéis que medem a temperatura do corpo quando captam a atividade elétrica no cérebro.
“E toda vez que você pensa, ou toda vez que sente algo, os neurônios disparam em seu cérebro, emitindo pequenas descargas elétricas. Padrões característicos podem ser usados para tirar conclusões”, afirma.
“Por exemplo, se você vê uma propaganda e sente alegria ou estresse ou raiva, tédio, envolvimento… todas essas reações podem ser captadas por meio da atividade elétrica em seu cérebro e decodificadas com a inteligência artificial mais avançada.”
Ou seja, esses sinais cerebrais transmitem o que sentimos, observamos, imaginamos ou pensamos.
Farahany afirma que as pessoas precisam compreender e aceitar que o cérebro “não é inteiramente delas”.
Essa situação leva a própria filosofia a questionar o conceito de livre arbítrio, ou seja, o poder de um indivíduo de optar por suas ações.
“Imagine que você se proponha no começo da semana a não passar mais de uma hora por dia nas redes sociais. Aí você descobre no final que você gastou quatro horas por dia. O que aconteceu?”, pondera a professora de Direito e Filosofia na Duke.
“Se existem algoritmos projetados para te capturar quando você quer se desconectar, se existem notificações quando você fica muito tempo fora do celular, se você quer assistir a só um episódio da série e o próximo começa automaticamente, você usou seu livre arbítrio? São ferramentas e técnicas projetadas para prejudicar aquilo com que você se comprometeu.”
‘Tecnologia em si raramente é o problema’
Farahany, ao contrário do que se possa pensar, é uma grande entusiasta dos avanços da neurotecnologia.
Ela enumera ao longo de The Battle for Your Brain uma longa lista de contextos em que o monitoramento cerebral poderia melhorar a humanidade e salvar vidas.
“O que eu proponho é um equilíbrio. É tanto uma forma de as pessoas enxergarem os aspectos positivos da tecnologia, mas também de estarem protegidas contra os riscos mais significativos”, diz.
“Para chegar lá, é necessário mudar a forma como pensamos a nossa relação com a tecnologia. A tecnologia raramente é o problema. Quase sempre é o mau uso.”
“Não se trata de encampar posições absolutas do tipo ‘tudo isso é ruim’ ou ‘tudo isso é ótimo’, mas tentar definir quais são as funcionalidades dessa tecnologia para o bem comum e quais são os riscos de uso indevido.”
Esses cenários de um futuro não tão distante, no entanto, são complexos, cheios de facas de dois gumes.
A neurotecnologia poderá reduzir o número de acidentes fatais ao acompanhar os graus de desatenção e, principalmente, de fadiga que atingem caminhoneiros e condutores de trem/metrô, por exemplo.
Essa mesma funcionalidade pode ser abusada por uma empresa ou escola em busca da produtividade total, em que momentos de distração de um empregado ou aluno são vigiados, registrados e eventualmente punidos.
Uma pulseira que capta ondas eletromagnéticas enviadas pelo cérebro para movimentar braços e mãos poderá transformar esses impulsos em sinais eletrônicos e tornar experiências digitais ou de realidade virtual muito mais intuitivas e integradas.
E há um potencial ainda mais importante nesse dispositivo: o de detectar os estágios iniciais de uma doença neurodegenerativa. A análise das atividades cerebrais como um todo poderá representar um salto imenso para a medicina e a longevidade.
Por outro lado, escreve Farahany no livro, a mesma pulseira também perceberá “se você está envolvido em uma atividade íntima usando suas mãos em seu quarto”.
E todos esses dados nas mãos de governos?
Mas para a professora iraniana-americana a grande preocupação em relação à privacidade individual está em governos de posse de uma gama cada mais ampla de dados pessoais.
Ela relata que o Departamento de Defesa dos EUA financiou uma empresa que desenvolveu um sistema biométrico que combina dados de ondas cerebrais, estados cognitivos, reconhecimento facial, análise das pupilas dos olhos e mudanças na quantidade de suor produzido.
Já na China, uma reportagem de 2018 do jornal South China Morning Post contava que trabalhadores de diversos ramos e integrantes de forças militares do país já usavam monitores de ondas cerebrais para detectar picos emocionais como depressão, ansiedade ou raiva.
Além do uso para melhorar performances e assim o resultado financeiro de empresas, a reportagem dizia que outro objetivo era “manter a estabilidade social” chinesa.
Farahany afirma que, na maioria dos países, as leis sobre privacidade não contemplam explicitamente o direito à privacidade mental.
“Acredito que as Nações Unidas precisam avançar no sentido de reconhecer o que chamo de ‘direito à liberdade cognitiva’. Um direito universal que nos direcionaria a uma atualização da privacidade, que diga explicitamente que há direito à privacidade mental, um direito de estar protegido contra interferências na maneira como pensamos e sentimos.”
Ela diz que “liberdade de pensamento” é hoje aplicada e entendida como sendo estritamente a respeito de liberdade de religião e de crença.
“Acho que precisamos expandir esse entendimento para haver uma proteção contra a interferência, a manipulação e a punição contra o pensamento.”
O problema é que a tecnologia se desenvolve sempre mais rápido que o debate e a aprovação de uma legislação, e empresas e governos se aproveitam dos vazios de legalidade.
“Trata-se realmente de tentar descobrir o quanto antes, e também conforme a tecnologia evolui, quais são seus benefícios e riscos. E depois esclarecer o que está em jogo e desenvolver um regime regulatório que aborde isso. Nem sempre é fácil de fazer”, reconhece Farahany.
O projeto de Elon Musk
O mais visível projeto de neurotecnologia tem vários elementos para a controvérsia: envolve a implantação de um chip no cérebro e tem a liderança de Elon Musk, figura frequente no noticiário e muitas vezes envolto em polêmicas.
Uma de suas empresas, a Neuralink, quer no futuro implantar esse tipo de dispositivo no órgão mais complexo do ser humano para curar doenças como Alzheimer e permitir que pessoas com doenças neurológicas controlem celulares ou computadores com a mente.
Alguns especialistas na área demonstram receio com o projeto, levantando dúvidas sobre as implicações desse tipo de tecnologia desenvolvida por uma empresa com fins lucrativos.
Em maio último, a FDA, a agência norte-americana que controla alimentos e remédios, autorizou o primeiro teste com humanos.
“Não estou tão preocupada com o projeto de Musk. Na verdade, estou um tanto otimista quanto a isso”, diz Farahany.
“A Neuralink promete duas inovações: fazer cirurgia via robôs, que executariam as partes mais delicadas e difíceis da operação [de implante de neurotecnologia]. A segunda são eletrodos do tamanho de um fio de cabelo que poderiam ser implantados com muito menos risco para o cérebro humano.”
Poucos cirurgiões no mundo têm habilidade hoje para executar um procedimento assim.
“Se eu me tornasse severamente incapacitada a ponto de não conseguir mais me comunicar ou me mexer, eu provavelmente buscaria a oportunidade de ter algum tipo de tecnologia neural implantada.”