Estudos indicam racismo estrutural no sistema prisional. Desde a infância, negros estão vulneráveis à abordagens violentas
Conforme estudos, viés de raça, gênero e classe social é refletido nas abordagens policiais. Pesquisa também revela faixa etária da população encarcerada no Brasil – (crédito: Reprodução/Redes Sociais)
Crianças e adolescentes pretos têm duas vezes mais chances de serem parados e revistados por policiais em São Paulo. Os dados compõem o levantamento do Núcleo de Estudos da violência da USP (Universidade de São Paulo), que aponta para a existência de um viés específico de raça e gênero no contatos intrusivos e violentos desses indivíduos com a polícia. Mas não são apenas os moradores do estado mais rico do país que estão sujeitos a esse tipo de abordagem, a prática é observada em outras unidades da federação.
O problema é apenas a ponta do iceberg, diretamente relacionado ao perfil da população encarcerada no Brasil. As características de raça, gênero e perfil socioeconômico são refletidas no sistema prisional brasileiro. Segundo o Anuário Brasileiro de Segurança Pública, enquanto a população negra compõe quase 70% da comunidade carcerária, a parcela considerada não negra (brancos, amarelos e indígenas) representa apenas 30%.
O Fórum Brasileiro de Segurança Pública (FBSP) divulgou dados mostrando que, no país, o sistema carcerário é formado majoritariamente por pessoas negras. De acordo com o levantamento, entre 2005 e 2022 houve crescimento de 215% da população branca encarcerada. No entanto, em números gerais, a parcela de brancos caiu de 39,8% para 30,4% entre os presos. Enquanto isso, entre os negros cresceu 381,3%, no mesmo período.
Em 2005, 58,4% do total da população prisional era negra, em 2022, esse percentual foi de 68,2%, o maior da série histórica disponível. “O sistema penitenciário deixa evidente o racismo brasileiro de forma cada vez mais preponderante. A seletividade penal tem cor”, aponta o anuário. Ainda de acordo com a publicação, “o sistema prisional brasileiro escancara o racismo estrutural”.
Na avaliação da socióloga e pesquisadora do FBSP Betina Barros são vários os desafios que o país enfrenta quando o sistema prisional é analisado. Ela destaca que o racismo é um fenômeno que contribui para que o perfil da população carcerária seja composto por jovens negros, em sua maioria.
“A gente sabe que muitas vezes o perfilamento racial é algo que faz com que a polícia foque na abordagem de determinadas pessoas. O local onde essa pessoa mora também faz com que a polícia possa estar com olhos mais atentos para essa região do que para outras. Quando você olha para a população prisional e vê que a maior parte são pessoas negras, não tem como dizer que as instituições não possuem, em alguma medida, um olhar racista quando elas atuam. Mas também faz parte de um racismo que passa pela desigualdade social”, explica Barros.
Outro dado que chama atenção diz respeito à faixa etária da população. Conforme a pesquisa, 62,6% das pessoas privadas de liberdade têm entre 18 a 34 anos. Ou seja, a população carcerária apresenta o mesmo perfil da grande maioria de vítimas de mortes violentas intencionais, como aponta o anuário. “Estamos diante dos atravessamentos do racismo estrutural que opera como um fator determinante na política prisional brasileira. Ou seja, o sistema de justiça tem reproduzido padrões discriminatórios, naturalizando a desigualdade racial.”
Superlotação
O inchaço do sistema prisional também é confirmado pelo levantamento. De 2021 para 2022, foi contabilizado aumento de 0,9% no número de pessoas privadas de liberdade, passando de 815.165, para 826.740. O relatório salienta que o Brasil continua enfrentando uma ausência importante de vagas nas penitenciárias.
Especialistas ressaltam que a superlotação é um problema alarmantee repercute para o aumento da violação dos direitos humanos e o surgimento de facções criminosas. Os dados também revelam um excedente de 230.578 pessoas encarceradas, o que corresponde a quase 50% além de sua capacidade.
Já entre os presos provisórios, foi constatada redução. Em 2020, 30% das prisões eram provisórias; em 2021 houve queda para 28,5%; e em 2022 para 25,3%. A publicação aponta que o recuo pode estar relacionado a implementação das audiências de custódia, cujo marco inaugural data de 2015. Mesmo com a queda, há 210.687 pessoas encarceradas sem condenações.
João Paulo Ferraz, especialista em direito penal, explica que as prisões ilegais e desnecessárias contribuem para a superlotação das unidades prisionais. “Um exemplo que bem resume essa circunstância é o do excesso de prisões dos chamados pequenos traficantes. Em sua maioria, são jovens de baixa escolaridade, presos em flagrante com pequenas quantidades de droga que, sob a suposta acusação de tráfico, acabam sendo presos preventivamente e condenados a penas altíssimas.”
Na avaliação do advogado criminalista Thiago Turbay Freiria, o encarceramento em massa reduz as chances de um tratamento digno e de ressocialização. “Se há um hiperencarceramento, você reduz a possibilidade de haver tratamento digno desses presos”, explica.
Para o especialista, as violações dos direitos humanos contra os detentos estão em desacordo com os tratados internacionais de direitos humanos. O advogado lembra que é dever do Estado garantir e tutelar os direitos fundamentais do cidadão. “O fato de estarem no sistema carcerário não coloca essas pessoas como uma classe menor de direitos ou desobriga o Estado a preservar esses direitos. Ao contrário, como o Estado é aquele que tutela os direitos dessa pessoa, ele se arvora de outras obrigações para além daquelas que tem uma comunidade normal”, explica.
Fiscalização
A falta de fiscalização nas unidades prisionais é um dos desafios a serem superados, conforme apontam especialistas ouvidos pelo Correio. O problema agrava inúmeras violências que existem estruturalmente nas unidades.
A socióloga e pesquisadora do FBSP Betina Barros explica que, por vezes, os detentos enfrentam situações degradantes. “É um sistema bastante precário em termos de estrutura. Aí a gente está falando da estrutura física das instalações dos presídios”, ressalta. Segundo a especialista, os problemas vão desde as acomodações, à problemas alimentares.
O advogado Thiago Turbay Freiria relata que é comum os registros de violência serem apagados. “Quem viola e quem violenta é aquele que detém os registros de entrada e das imagens. É óbvio que haverá uma dificuldade de se alcançar uma prova nesses casos”, conclui o especialista.
Dificuldade de reinserção x reincidência
Após o cumprimento da pena, muitos presos acabam enfrentando dificuldades para se reinserir na sociedade. O relatório Reincidência Criminal no Brasil, divulgado em novembro de 2022 pelo Departamento Penitenciário Nacional (Depen), mostra que a média de reincidência entre indivíduos egressos no sistema prisional gira em torno de 21% no 1º ano, progredindo para 38,9% em cinco anos.
Para a pesquisadora Betina Barros, as altas taxas refletem a precariedade de infraestrutura do sistema prisional. “Há uma ausência de profissionais para auxílio na produção de documentação, na busca de novas oportunidades no mercado de trabalho. É uma rede que muitas vezes não é forte o suficiente para possibilitar que esse egresso saia do sistema prisional e tenha um caminho”, avalia.
Betina reforça, porém, que a inversão dessa situação não depende apenas de mudanças administrativas na manutenção dos presídios. “Passa, também, por conscientizar a população de que existiu um processo de responsabilização desse preso e que ele está totalmente apto a conviver socialmente novamente. Não adianta nada você falar em reinserção social, ao mesmo tempo que faz um discurso de que ‘bandido bom é bandido morto'”, pondera.
Ainda de acordo com a pesquisadora, esse ciclo de criminalização e pobreza tem início dentro dos próprios presídios. “(Essas pessoas) acabam tendo que contar com a proteção de facções que possibilitam acesso a comida, a visitas e a todas as necessidades básicas de um ser humano e que o Estado, muitas vezes, não provê”, completa Barros, que defende uma reestruturação da política carcerária do Estado.
Argumento reforçado por João Paulo Ferraz, que critica a difusão de uma visão meramente punitivista. Ele também destaca a influência das redes sociais, que impactam negativamente nas condições de ressocialização de indivíduos egressos. Segundo o especialista em direito penal, o “tribunal das redes sociais” tem o potencial de gerar sentenças vitalícias que não estão de acordo com a legislação.
O advogado defende a necessidade de um auxílio para os ex-presidiários, assegurando o recomeço de uma vida digna e lícita. Segundo o especialista em direito penal, alguns esforços já têm sido empregados nesse âmbito.
“O Conselho Nacional de Justiça vem adotando uma série de medidas voltadas ao acompanhamento de egressos do sistema prisional, como, por exemplo, o Escritório Social Virtual, que é um aplicativo por meio do qual ex-detentos e familiares podem acessar serviços como a emissão de documentos e o acompanhamento de processos, além de encontrar cursos de qualificação e vagas de emprego”, completa Ferraz.
Fonte: Correio Braziliense*