Marcelo Torres
O trânsito, ó, o trânsito! Ali é onde eu mais sinto esperança nos homens. Ali caminha a humanidade. E numa sexta-feira de tarde, então, ali é onde a vida se ilumina. Ontem mesmo tive uma prova disso: após deixar minha filha na escola, saí com o carro sem notar que ela, ao descer do veículo, não havia fechado direito a porta traseira direita. Na estrada-parque, nem bem tinha andado cem metros, com velocidade talvez ainda nos quarenta, percebi que um carro estava quase colando no meu lado direito — e pelo visto seu condutor estava naquela inquietação para me falar alguma coisa, e coisa boa é que não seria.
Aumentei a velocidade o quanto pude, para uns cinquenta, mas não adiantou muito — o trânsito era lento, já que ali, a cada mil metros, há um fiscal eletrônico multando quem passar de sessenta por hora. E o outro condutor na mesma toada, como se quisesse fazer um encontrão do carro dele contra o meu. E buzinou, abriu a janela, botou o braço para fora e, numa fração de segundo, pensei ter feito, antes e sem ver, alguma barbeiragem que ele não tenha gostado, e achei que ele fosse me xingar de tudo que era nome e me chamar para as vias de fato em plena via pública. Essa não é uma das cenas urbanas vistas todo santo dia no trânsito das grandes cidades?
Outro dia li a notícia de que, no trânsito de Salvador, um juiz e um delegado se desentenderam por um motivo fútil — consta que o magistrado não teria respeitado a preferência do policial; ambos seguiram dirigindo e se desafiando, se ameaçando, dedos em riste, palavras de baixo calão, até que os dois pararam seus veículos, desceram e sacaram as armas, mas um acabou atirando primeiro, matando o outro.
Enquanto lembro desse fato, o moço buzina e grita educadamente, “sua porta tá aberta!”, e aponta para ela. Aliviado, agradecido, mostro o dedo mata-piolho, mas sem olhar para ele, pois as leis de trânsito nos mandam olhar para a frente, não podemos desviar a atenção, ao volante todo cuidado é pouco. Pouco mais adiante, ao sinal vermelho do semáforo, um outro veículo para ao lado, e de novo é buzina, é o vidro se abrindo, é o indicador apontado, é o grito moderado, “sua porta está aberta”. E outra vez faço o sinal positivo com o polegar, e esboço um breve sorriso, porque lembro de uma piada.
Dizem que um brasileiro, dirigindo em Lisboa, viu outro automóvel com a porta nessa situação. “Sua porta está aberta”, o brasileiro gritou. “Aberta, não”, retrucou o português, “ela está é mal fechada”. E realmente, a rigor mesmo, a porta não está aberta-aberta. Não. Mas como é que se diz, então? Que ela não está de todo encaixada? Ou é melhor falar que está mal fechada, como diria o português da piada? Seja lá como for — aberta, mal fechada, não-encaixada — o fato é que quando a porta do carro fica nessa condição, tem-se no trânsito “um intervalo nas hostilidades”, nas palavras de Luís Fernando Verissimo, “é como um código de honra”, segundo ele. Pois bem: o itinerário entre a escola da minha filha e a nossa casa são quase vinte quilômetros e nesse trajeto eu passo todo santo dia por uns dezoito pardais e umas quinze sinaleiras. Ontem, ao todo, com a porta traseira direita naquela situação, devo ter ouvido umas quinze a vinte vezes o referido aviso — o que me fez sentir a maior esperança na humanidade. Volto, contudo, ao grande cronista gaúcho, criador de O Analista de Bagé, que nos lembra um detalhe importante: se a porta se abrir e você cair na rua, os carros passam por cima. “Mas avisaram”, lembra Verissimo.