Marcelo Torres
“Com as palavras todo o cuidado é pouco”, disse José Saramago, em As Intermitências da Morte, livro lançado em 2005. De acordo com o escritor, que é o único autor em língua portuguesa agraciado com o Prêmio Nobel de Literatura, as palavras, “mudam de opinião como as pessoas”.
Ele citava o caso do vocábulo “nojo”, que Luís Vaz de Camões usara em Os Lusíadas, quatro séculos e trinta e três anos antes — “o termo nojo, posto pelo épico na boca do infeliz gigante [‘Oh, que não sei de nojo como o conte!’] significava então, e só, tristeza profunda, pena, desgosto”.
A referida palavra teve tais significados por pelo menos quatro séculos, como podemos constatar em textos de grandes nomes da nossa literatura. O narrador de Dona Mônica, por exemplo, um conto de Joaquim Maria Machado de Assis, do ano 1876, fala de um funcionário público que faltara à repartição “além dos sete dias de nojo, mais uns cinco, quase meio mês”.
Já no conto Umas férias, que faz parte das Relíquias da Casa Velha, publicado pelo Bruxo do Cosme Velho em 1906, o narrador fala sobre o dia em que o tiraram da escola por causa do morte do seu pai: “Lá iam meu pai e as férias! Um dia de folga sem folguedo! Não, não foi um dia, mas oito, oito dias de nojo, durante os quais alguma vez me lembrei do colégio”.
Seis décadas depois daquelas relíquias, já no segundo terço do século vinte, Jorge Leal Amado de Faria escreveria nada menos que oito vezes o termo nojo em Dona Flor e Seus Dois Maridos, um dos seus livros mais famosos. “Nos tempos iniciais do nojo”, Florípedes Paiva Guimarães, a Dona Flor, “movia-se apenas na dor e na ânsia”, ou seja, “os primeiros tempos de viuvez” foram “tempos de nojo, de luto fechado, em preto e em silêncio, entre o murmúrio das comadres e as memórias dos sete anos de casamento”. “Dona Flor toda em negro, de nojo por dentro e por fora”. “Esse luto fechado, esse nojo mais além de toda aparência, mais além de todo o cerimonial obrigatório nos ritos da viuvez […] tudo isso era inaceitável para as comadres”. “Para elas, o tempo do nojo estava durando demasiado”.
Vê-se assim que desde os primórdios da última flor do Lácio, até ao menos dois terços do século vinte, a palavra nojo era sinônimo de luto, pesar, tristeza pela morte de alguém. E tanto é verdade que até hoje, nos regimes de servidores públicos, existe um período de ausência autorizada cujo nome oficial é “licença nojo”, quando da morte do pai ou da mãe ou de outro parente de primeiro grau.
No Vade Mecum, inclusive, dicionário que é uma espécie de bula, uma bíblia dos advogados, o termo “nojo” quer dizer (1) “licença curta concedida ao servidor público por motivo de luto; (2) período de luto que o réu atravessa em virtude do falecimento de algum parente; trata-se de um período de sete dias, nos quais o réu não deve ser citado”.
Um causo que se conta no meio jurídico é que certa vez um cidadão, estando com um processo que se arrastava há quatro ou cinco anos numa vara judiciária, ligou lá para a repartição a fim de saber em que pé se encontrava seu processo. E a pessoa que atendeu ao telefone teria dito o seguinte: “Olha, infelizmente o senhor só vai obter essa informação na semana que vem, pois o funcionário responsável pelo assunto está em gozo de licença-nojo”.
O cidadão, sem conhecer aquela expressão, e achando que o outro estava gozando de sua cara, desdenhando de sua paciência, soltou raios e coriscos. Mas, voltemos a Saramago: “Com as palavras todo o cuidado é pouco, elas mudam de opinião como as pessoas”. De qualquer sorte, ele concordou com a mudança. “O vulgar da gente considerou, e muito bem, que se estava a perder ali uma estupenda palavra para expressar sentimentos como a repulsa, a repugnância, o asco”.