Segundo o Ministério da Justiça, pelo menos 60 mil refugiados venezuelanos vivem no Brasil. Dados foram compilados pela plataforma R4V
O número de venezuelanos cadastrados para receber o Auxílio Brasil, programa social destinado à população em situação de vulnerabilidade, cresceu 142% em um ano, entre novembro de 2021 e o mesmo período do ano passado. Os dados foram compilados pela Plataforma de Coordenação Interagencial para Refugiados e Migrantes da Venezuela (R4V), que reúne informações do governo federal.
A plataforma aponta que em novembro de 2021, 50 mil venezuelanos recebiam o benefício. Em novembro de 2022, o índice alcançou o patamar de 131 mil cadastrados, dos quais a maior parte (30 mil) vive no estado de Roraima.
Entre janeiro de 2017 e março de 2022, 325 mil venezuelanos chegaram em solo brasileiro. Eles fazem parte de um grupo de mais de 60 mil refugiados, de diferentes nacionalidades, que enxergam na maior economia da América Latina novas perspectivas de vida.
Ainda há, no entanto, uma grande parcela de refugiados que teria direito ao benefício, mas não sabe onde realizar o requerimento. Carlos Eduardo Ventura, 26, conta que foi informado que não poderia receber o Auxílio Brasil, “porque chegou ao país depois da pandemia”, em 2021.
Ventura decidiu vir ao Brasil após a indicação de um amigo, que já estava no país, para uma vaga no restaurante em que trabalhava. “Eu tive bastante dificuldade porque cheguei aqui sem documentação, e precisei de muita ajuda, porque não sabia onde vir aqui no Brasil para tirar os documentos”, relata.
Ele e o amigo, Jorge Eliecer Ramos, 31, fazem parte da pequena parcela de refugiados venezuelanos que cruzaram a fronteira com um emprego garantido. Os dois enviam uma parte do dinheiro que recebem para a família, que ficou na Venezuela.
“Eu vim porque a situação está muito ruim no meu país. A gente não tem como viver, estamos passando fome”, lamenta Jorge. “É um desastre — salário mínimo muito baixo, não temos sequer medicamentos. Eu vim para o Brasil em busca de novas oportunidades e um futuro melhor”.
Longe de seus países de origem, refugiados se despedem dos próprios lares rumo ao Brasil, levando na mala a expectativa de encontrar qualidade de vida do outro lado da fronteira. Diferente de um imigrante comum, esses cidadãos fogem do país de origem forçados por situações adversas como perseguições políticas e religiosas, desastres naturais, guerras, violações de direitos humanos e extrema pobreza.
Entretanto, a recepção em território brasileiro nem sempre é acolhedora. Apesar de ser reconhecido internacionalmente como um dos países mais abertos a refugiados, índices de desemprego, insegurança alimentar e dificuldade de acesso à saúde e educação são desafios enfrentados pelos estrangeiros que chegam ao Brasil.
Nesse cenário, o governo de Luiz Inácio Lula da Silva (PT) promete uma agenda humanizada, com Silvio Almeida no comando do Ministério dos Direitos Humanos, além de mais proteção durante a gestão de Flávio Dino no Ministério da Justiça e Segurança Pública (MJSP).
Especialistas consultados pelo Metrópoles apontam que ainda há um longo caminho a ser percorrido quando se trata de garantir os direitos dos refugiados, bem como cumprimento integral da legislação e dos tratados internacionais que regulamentam as práticas de acolhimento.
Política nacional
Pablo Mattos, Oficial de Proteção do Alto Comissariado das Nações Unidas para Refugiados (ACNUR), explica que a organização, que trabalha em parceria com o Estado brasileiro, reconhece a receptividade do país.
“Historicamente o Brasil tem uma tradição no acolhimento de refugiados e esperamos que essa tradição se mantenha. A Lei de Refúgio do Brasil [de 1997] é considerada uma lei de vanguarda, um modelo no exterior”, frisa, ao Metrópoles.
Com as novas perspectivas, o ACNUR espera que as políticas públicas voltadas para refugiados no Brasil se tornem ações de Estado, e não de governo. Ou seja, que sejam integradas à atuação do Estado brasileiro e não fiquem à mercê de planos políticos a depender de quem ocupa a Presidência.
A agência da ONU também espera que o novo governo crie concursos públicos para profissionais com capacitação específica. “As ações e as medidas para populações refugiadas são e precisam ser cada vez mais transversais, e que isso seja cada vez mais visto e cada vez mais colocado em prática”, completa.
A lei de migração de 2017, ainda não implementada em sua totalidade, poderá sofrer alterações no novo governo. No final de janeiro, Flávio Dino publicou uma portaria que cria um grupo de trabalho (GT) para revisar o texto.
“Precisamos implantar uma cultura da paz e dos direitos humanos, e isso não é uma ação estatal. Depende da nossa capacidade de emular bons valores para que consigamos reverter os paradigmas mais profundos e enraizados do fascismo, que não está na Esplanada dos Ministérios”, disse o político em coletiva de imprensa.
Se a ACNUR tem expectativa sobre o que esperar em relação ao novo governo Lula, a casa de acolhimento Missão Paz de São Paulo já enxerga algumas sinalizações positivas, pelo menos é o que afirma o padre Paolo Parise, um dos diretores da instituição.
“Vemos coisas simbólicas como o retorno do país ao Pacto Global para Migração Segura, Ordenada e Regular da ONU“, disse Parise. O Brasil deixou o compromisso em 2019.
O pacto estabelece parâmetros para a gestão de fluxos migratórios do país, e contém compromissos já contemplados pela Lei de Migração. Segundo o Ministério das Relações Exteriores, “o retorno do Brasil ao pacto reforça o compromisso do governo brasileiro com a proteção e promoção de direitos dos mais de 4 milhões de brasileiros que vivem no exterior”.
Porém, a escolha do maior país da América do Sul como destino migratório para essa população em situação de vulnerabilidade não ocorre na base da aleatoriedade.
“As pessoas vêm ao Brasil por muitas razões, seja por questões econômicas ou para fugir de guerras e perseguições, como é o caso daqueles que deixaram o Afeganistão”, disse o padre Paolo Parise. “O Brasil também é usado como rota para chegar aos Estados Unidos ou Canadá. As pessoas se colocam em risco por mais de dois meses até chegar nesses países atravessando toda a América Latina”.
Leis brasileiras “de vanguarda”
A lei citada por Mattos considera considera refugiado todo indivíduo que deixou seu país por motivos de “de raça, religião, nacionalidade, grupo social ou opiniões políticas encontre-se fora de seu país de nacionalidade e não possa ou não queira acolher-se à proteção de tal país” e que por esses motivos não possa ou não queira regressar aos seu país de origem.
O texto de 1997 ainda estende o direito ao refúgio ao cônjuge, aos ascendentes e descendentes, “assim como aos demais membros do grupo familiar que do refugiado dependerem economicamente, desde que se encontrem em território nacional”.
Um dos pontos da legislação considerados mais “vanguardistas” para a época foi a não criminalização do ingresso irregular em território nacional e este não sendo um impeditivo à solicitação de refúgio. O texto também criou o Conare, sob o guarda-chuva do Ministério da Justiça.
Porém, uma lei tão moderna para a época não foi o suficiente e, em 2017, o governo modernizou a própria política migratória. Dentre as diretrizes, estabeleceu a universalidade dos direitos humanos, a não criminalização da migração e a acolhida humanitária.
Um dos trechos da norma de 2017 também repudiou uma prática comum em outros países que recebem refugiados e imigrantes, a deportação em massa. “Repúdio a práticas de expulsão ou de deportação coletivas”, diz o texto.
“Esta lei não prejudica a aplicação de normas internas e internacionais específicas sobre refugiados, asilados, agentes e pessoal diplomático ou consular, funcionários de organização internacional e seus familiares”.
De acordo com Mattos, é necessário olhar o refugiado pela ótica de suas necessidades e não como um conjunto de leis que, no papel, parece atendê-los. “Crianças e idosos são refugiados. Indígenas na fronteira e povos africanos também são. Isso é transversal”, reforça.
O que ainda precisa ser feito
A lei de migração muito celebrada ainda tem pontos que precisam ser colocados em prática, como o Art. 120, que estabelece uma maior integração entre as unidades federativas para estabelecer uma política nacional de migração, refúgio e apatridia. “Esperamos isso avance neste governo”, disse Mattos.
Carla Mustafa, coordenadora do Centro de Direitos Humanos e Cidadania do Migrante (CDHIC), explica que “o que o país precisa aprimorar é a forma de acolhimento e integração dessas pessoas na sociedade. O maior desafio é quanto ao processamento das solicitações que ocorrem em etapas e que podem levar anos para análise”, frisa.
“Falta de uma política migratória nacional que abarque todos os estados e é isso que esperamos alcançar. Um exemplo disso é o visto humanitário afegão. Nós damos o documento e não damos estrutura para acolhida dessas pessoas que chegam em situação de vulnerabilidade. O documento não basta”, completa o padre Paolo Parise.
O Brasil já expediu, entre 1º de setembro de 2021 e 6 de dezembro de 2022, 6.302 vistos humanitários aos refugiados afegãos. Desses, entre janeiro e outubro de 2022, 3.367 chegaram ao Brasil, pelo Aeroporto Internacional de Guarulhos, em São Paulo.
Por outro lado, o Oficial de Proteção da ACNUR celebrou a Operação Acolhida ocorre em Roraima. Criada ainda durante a gestão de Michel Temer. Deflagrada pelo Exército brasileiro em fevereiro de 2018, a operação tem como objetivo garantir a proteção dos venezuelanos que atravessam a fronteira, prestando auxílio humanitário aos imigrantes em situação de vulnerabilidade, refugiados da crise política, institucional e socioeconômica do país vizinho.
“Esperamos que seja mantida pelo novo governo enquanto reposta emergencial à população que ingressa em Roraima. A bem sucedida operação foi celebrada em fóruns internacionais”, afirmou.
Fonte: Metrópoles