Número de crianças hospitalizadas em decorrência da desnutrição é o maior registrado em 13 anos. Especialistas defendem maior atenção à saúde básica em regiões pobres
(crédito: Minervino Junior/CB/D.A Press)
Na segunda década do século 21, o Brasil enfrenta um problema que aflige nações marcadas pela miséria: a desnutrição infantil. O Observa Infância, iniciativa criada pela Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz) para divulgar dados sobre a saúde de crianças brasileiras de até cinco anos, apontou, no monitoramento feito até 2021, um aumento no atendimento hospitalar a crianças sem acesso adequado a alimentos. Segundo o estudo, o número de hospitalizações de bebês menores de um ano por desnutrição neste ano foi o mais alto dos últimos 13 anos.
O Observa Infância registrou uma média de oito internações diárias por desnutrição, sequelas e deficiências nutricionais em bebês menores de um ano. Em 2021, a taxa chegou a 113 internações a cada 100 mil recém-nascidos, a maioria deles sendo pretos ou pardos.
De janeiro de 2018 a agosto de 2022, no Sistema Único de Saúde (SUS), foram registradas 13.202 hospitalizações. Delas 5.246 tinham a indicação preta ou parda no preenchimento da raça. A equipe monitora os dados sobre o tema desde 2008. A partir de 2012, observou-se um declínio persistente no índice — a taxa permaneceu menor que 80 internações a cada 100 mil recém-nascidos até 2015. Deste ano em diante, o número aumentou, atingindo o máximo da série em 2021.
Diagnóstico precoce
O coordenador do Observa Infância, Cristiano Boccolini, explica que, além do aumento dos preços de alimentos, especialmente os que compõem a cesta básica, a baixa qualidade dos empregos e a informalidade são fatores que influenciam no quadro de desnutrição. “A taxa de hospitalização também foi agravada pela situação de que até o Bolsa Família um dos critérios para receber o benefício era que a família com criança menor de 7 anos tinha que levar até o posto de saúde para realizar a pesagem e medição de altura”, conta o especialista.
“Com a mudança do programa, esse quesito passou a não ser mais obrigatório, então a detecção precoce de crianças desnutridas deixou de acontecer. Se não detecta e resolve na atenção básica, as crianças acabam sendo hospitalizadas”, pontua Boccolini.
De acordo com o estudo divulgado em setembro deste ano, pelo 2º Inquérito Nacional sobre Insegurança Alimentar no Contexto da Pandemia da Covid-19 no Brasil (Vigisan), os domicílios onde moram crianças menores de 10 anos possuem maior índice de insegurança alimentar grave ou moderada — que ocorre quando não há qualidade na alimentação ou falta alguma das refeições. Os percentuais mais altos se concentram no Norte e Nordeste, com 51,9% e 49,4%, respectivamente.
Boccolini diz ter relatos dos efeitos da desnutrição no desenvolvimento da crianças. “O aleitamento exclusivo deve ocorrer até os seis meses. A partir disso tem que entrar com alimentos complementares, para a criança continuar se desenvolvendo”, conta. “Tem mães, em situação de fome, que seguem somente com o aleitamento, isso pode prejudicar o desenvolvimento da criança”, alerta. “Também tem relatos em que mães estão diluindo o leite de vaca ou a fórmula infantil com água para oferecer a alimentação à criança. Isso também prejudica”, acrescenta.
Geração comprometida
Para o coordenador do Observa Infância, Cristiano Boccolini, o problema da desnutrição em larga escala no Brasil é o possível surgimento de uma geração, em 15 anos, com maior prevalência de doenças crônicas, como diabetes, hipertensão, insuficiência renal e até obesidade. Isso porque, com a carência nutricional, há um condicionamento do organismo a poupar energia, gerando aumento de peso.
“A curto prazo as crianças desnutridas ficam mais propensas a infecções, podem ter atraso no desenvolvimento cognitivo e nos marcos infantis básicos, como para falar, andar, engatinhar. A médio e longo prazo, crianças que passaram por privação crônica e aguda de alimentação podem desenvolver doenças crônicas. Isso tem um peso, que é o custo das hospitalizações para o SUS. Depois, terá o custo para melhorar o rendimento escolar na idade adulta e para o acompanhamento dessas doenças ao longo da vida”, observa o especialista.
Saúde básica
Maria Helena Ribeiro de Checchi, professora de medicina na Universidade Federal do Amazonas (Ufam), conhece a realidade de Coari (AM), município a 363 km de Manaus. Ela explica que, no território ribeirinho, a falta de acesso à saúde básica e ao saneamento são os fatores críticos para a má nutrição das crianças menores de um ano.
“Elas [as crianças] não têm um acesso mais facilitado a serviços de assistência à saúde, como de prevenção e promoção de saúde. Nesse sentido, toda e qualquer orientação nutricional, suporte medicamentoso, orientação de prevenção e promoção de saúde básica tem um limite grande. A questão do saneamento básico é um potencializador das fragilidades de sobrevivência ou de uma expectativa de vida para as crianças. Nós vivemos dois Brasis muito distintos, há um Brasil esquecido ainda nos territórios do interior do Amazonas, onde políticas públicas não têm pleno acesso no sentido de promover um suporte de saúde quanto a uma oferta de alimentação”, explica.
“Os municípios têm que se organizar para chegar às famílias invisíveis ao sistema de proteção social. É preciso voltar a acompanhar o estado nutricional das crianças até sete anos, com uma ação sistemática”, alerta Cristiano Boccolini.