Desaceleração da gigante dos filmes e séries indica futuro incerto para segmento, que acostumou assinantes com preços baixos e catálogos fartos
A Netflix mudou a maneira como consumimos conteúdo em vídeo na internet e virou sinônimo de serviço de assinatura por streaming. A companhia ajudou a definir esse mercado, o que significa também que ela funciona como um termômetro para o setor — e o cenário atual não é animador. Depois de anos de otimismo, o tombo recente da Netflix indica que a “farra” do streaming pode estar perto do fim, com corte de custos, fuga de usuários e aumento de preços.
O sinal de alerta foi disparado em 19 de abril, quando a gigante apresentou queda no número de assinantes pela primeira vez em 11 anos: foram 200 mil assinantes a menos nos três primeiros meses do ano. A empresa atribuiu o desempenho à pressão inflacionária mundial, à alta global de juros e à guerra na Ucrânia (já que a companhia encerrou seus serviços na Rússia).
Difícil dizer que se trata de um simples acidente de percurso. A Netflix é a companhia de tecnologia que mais encolheu no mercado de ações em 2022, com retração de 70% no valor de mercado até sexta-feira passada. Além disso, o comando da empresa projeta retração de 2 milhões de assinantes no segundo trimestre deste ano, caindo para cerca de 220 milhões de usuários no mundo.
Para especialistas ouvidos pelo Estadão, os ventos contrários estão soprando contra todo o setor. Uma mudança é óbvia: não estamos mais isolados em casa. “Salas de cinema, restaurantes e teatros estão reabrindo, então as pessoas têm outras possibilidades de entretenimento. O assinante não tem tempo para consumir todo o conteúdo disponível. Torna-se uma lógica de excessos”, observa o professor Márcio Rodrigo, do curso de Cinema da Escola Superior de Propaganda e Marketing de São Paulo (ESPM-SP).
Para Sabrina Balhes, diretora de medição da Nielsen, além da questão de tempo, existe a competição entre os próprios serviços, que se multiplicaram nos últimos anos. Segundo estudo da Nielsen, o número de programas nas plataformas e televisão americanas saltou de 646 mil títulos para 817 mil no catálogo de 2019 para fevereiro de 2022. “A ‘prateleira do supermercado’ ficou enorme”, diz ela.
A proliferação de serviços resultou no aumento dos custos para atrair e manter assinantes. Segundo uma pesquisa da Ampere Analysis, os serviços de streaming gastaram US$ 50 bilhões em novos conteúdos no ano passado, aumento de 50% em relação a 2019.
Medidas
Para tentar reequilibrar a balança, a Netflix irá cortar custos — segundo o Wall Street Journal, a meta da empresa é enxugar 25% do orçamento. Claro, o reflexo disso será sentido no catálogo da plataforma, que deve tirar do ar produções caras ou com audiências pequenas. É algo que pode se espalhar por todo o setor.
Após a fusão de Discovery e Warner Media, David Zaslav, CEO da nova empresa, avisou que vai cortar custos em US$ 3 bilhões. “Quero competir contra as empresas líderes, não ganhar a guerra dos gastos (por conteúdo)”, disse ele. O resultado imediato foi o cancelamento da CNN+, serviço de streaming do canal americano que ficou no ar por apenas um mês — a economia deve ser de US$ 1 bilhão nos próximos quatro anos.
Produções da TNT e, principalmente, da HBO Max também devem ficar ameaçadas – Game of Thrones, por exemplo, custava cerca de US$ 100 milhões por temporada. Além do cancelamento de produções, o temor é que a qualidade daquilo que fica no ar caia também.
Para completar, os preços não devem parar de aumentar. Segundo cálculo do Estadão, se o brasileiro assinar todos os serviços de streaming, o pacote completo sai por R$ 268 por nove serviços ao mês — em 2019, quando havia menos dessas plataformas, esse valor era de R$ 77,70. A assinatura da Netflix, que em 2011 custava R$ 14,90, hoje pode sair por até R$ 55,90. No começo do mês, a Amazon aumentou em 50% no valor (de R$ 9,90 para R$ 14,90) da assinatura do Prime, que dá acesso ao serviço de streaming Prime Video, frete grátis no site da empresa, e ao streaming de música Amazon Music.
Tentativas
“O setor precisa se reinventar”, afirma Luís Bonilauri, diretor executivo de mídia e entretenimento da Accenture. Com o excesso de empresas, tempo mais escasso e ajustes nas finanças, irá sobreviver quem conseguir manter a atenção das pessoas. “Do ponto de vista do consumidor, ainda existem problemas não solucionados,” diz ele.
A Netflix deve apostar em novos modelos de assinatura. Em conferência com investidores, Reed Hastings, CEO da companhia, disse que pretende lançar assinaturas mais baratas, financiadas por publicidade — algo sobre o qual ele relutou ao longo dos anos.
Outra ideia (que deve desagradar bastante os assinantes atuais) é proibir o compartilhamento de senhas com usuários de diferentes lares. No passado, a gigante debochou de rivais e afirmou que “amar é compartilhar senha” — mas isso está em vias de ser mudado. Segundo a empresa, cerca de 100 milhões de lares dividem contas.
O analista Forest Connor, da consultoria Gartner, levanta dúvidas se isso será suficiente para a Netflix. “Existe o risco de essas táticas reduzirem o valor da vida útil de um usuário atual, fornecendo a opção de acessar conteúdo com menor receita média por usuário. Além disso, é possível que a redução do compartilhamento de senhas faça com que os clientes deixem a plataforma e optem por outro serviço”, diz.
Difícil prever se a Netflix, e todo o setor, conseguirá atravessar a crise sem mudanças bruscas — para quem resistiu à mudança da mídia física para o streaming, nada parece impossível. Mas o modelo de negócios das plataformas na última década (preços baixos, catálogos fartos e produções caras) parece ocupar um lugar no passado tanto quanto locadoras de vídeos. / COLABOROU BRUNO ROMANI.
Com Agenda Capital*