Palavras hoje são tão comuns no vocabulário, podem ter nascido em situações dramáticas e até criminosas. É o caso de “encrenca” e “sacana” (e sua derivação, “sacanagem”) cujas origens remetem à exploração sexual e ao tráfico de mulheres no Brasil do século XIX às primeiras décadas do XX. Em 1867, aportou no Rio de Janeiro um navio trazendo mulheres judias vindas de países do leste europeu. Segundo a historiadora Beatriz Kushnir, que pesquisou esse tema a fundo, 67 mulheres desembarcaram no Rio e outras 37 seguiram para a Argentina, todas levadas para bordéis das grandes capitais desses países. Começava uma história que se estendeu por mais de seis décadas e envolveu pelo menos duas mil mulheres obrigadas a se prostituírem. No Brasil, elas foram chamadas de “polacas” – termo pejorativo para as prostitutas judias de origem eslava. Estavam nas zonas do baixo meretrício do Mangue e da Lapa, no Rio de Janeiro, e do Bom Retiro e Santa Efigênia, em São Paulo. Eram vistas, também, na zona portuária de Santos, e em Manaus e Belém, cidades ricas no período áureo da borracha.
Encrenca, sacanagem e outros termos As polacas falavam o iídiche, língua muito utilizada pelas comunidades judaicas da Europa central e oriental, que mistura elementos do hebraico, eslavo e alemão. O iídiche serviu como um código secreto de comunicação entre essas mulheres. Língua dificilmente compreendida pelos frequentadores desses locais, mesmos os mais cultos e poliglotas pois o iídiche difere muito do hebraico e do alemão. Assim, durante o seu trabalho, quando suspeitavam que um cliente portava algum tipo de doença venérea, elas alertavam as demais chamando o sujeito de ein krenke que, em iídiche, significa “doença”. Homens com sífilis e outras DST deviam ser muito comuns, pois ein krenke popularizou-se entre os brasileiros transformando-se em “encrenca”. A prostituição embora não fosse crime pelo Código Penal, sofria constantes intervenções policiais por atentado ao pudor, vagabundagem e ameaça à saúde pública (MAZZIEIRO, 1998). Quando a política aparecia nos bordéis, as polacas gritavam sacana que, em iídiche, significa “perigo”. A palavra tem a mesma raiz hebraica que sakin (punhal), sakina (bandido) e sakun (risco). Os policiais passaram a chamar as zonas de prostituição de “sacanagem”. Assim, sacana e sacanagem entraram para a língua portuguesa com o sentido pejorativo de indivíduo safado, canalha, de comportamento sem ética, libertino e devasso. “Leilão de polacas”, cartão postal do começo do século XX. O kaftan combina com interessados o preço a ser pago pela prostituta. O fetiche da prostituta de pele branca atraia a clientela masculina aos bordeis do Rio de Janeiro e São Paulo.
O termo “cafetão”, aquele que explora a prostituição, originou-se por analogia à vestimenta usada pelos traficantes e encarregados dos prostíbulos: o caftan ou kaftan, uma túnica que chegava aos joelhos, com mangas longas e abotoada na frente, feita de lã, seda ou algodão, vestida por russos, persas, marroquinos e outros povos. Assim, “cafetão” e palavras derivadas – “cafetinagem” (lenocínio) “cafetina” (mulher que administra o bordel ou casa de prostituição) – também nasceram nesse contexto de exploração sexual e tráfico de mulheres judias do leste europeu. E quem eram esses traficantes? Eles pertenciam a uma organização internacional criminosa chamada Zwi Migdal.
Zwi Migdal: a máfia do tráfico de mulheres Zwi Migdal ou Zvi Migdal foi uma organização criminosa formada por homens ligados à comunidade judaica do Leste Europeu, e que atuou entre os anos de 1860 e 1939. Dedicou-se especialmente ao tráfico internacional de mulheres para prostituição. Elas eram retiradas de aldeias judias pobres da Rússia, Polônia, Lituânia, Estônia, Ucrânia e outros países de população eslava. O comércio humano nessa região é um crime antigo que remonta à Antiguidade e, especialmente ao século XII, na Europa medieval. Muitos etimologistas afirmam que a própria palavra “escravo” teria se originado de eslavo (sclavus em latim, slave em inglês, slav em russo, esclave em francês) denunciando a prática da escravidão de povos eslavos. Entre 1860 e 1930, milhares de jovens judias que queriam escapar da pobreza e do crescente antissemitismo foram atraídas para a América do Sul com falsas promessas. Os cafetões da Zwi Migdal, eles também judeus, aproveitando-se das dificuldades, do desemprego e dos medos das famílias judias pobres, aproximavam-se daquelas que possuíam meninas menores, com 12 a 15 anos de idade.
Disfarçados de agentes de emprego, casamenteiros ou, até mesmo, de noivos (chegavam a pedir a jovem em casamento), eles prometiam um futuro melhor na América. Apresentavam-se como cavalheiros, compatriotas e companheiros de fé. Chegavam a adiantar dinheiro à família o que era irrecusável diante da miséria e da fome. Nos porões dos navios ou mesmo antes do embarque, estupravam as meninas destruindo suas ilusões. Elas apanhavam e tinham seus passaportes confiscados. A partir daí iriam abastecer o próspero comércio de mulheres de pele clara que crescia no Brasil e na Argentina. Passariam a ser chamadas de “polacas”. A sede da Zwi Migdal ficava em Buenos Aires onde a organização possuía até uma sinagoga onde os homens se casavam. Em seu apogeu, na década de 1920, a Zwi Migdal possuía mais de 3.000 bordeis na Argentina e controlava cerca de 30.000 mulheres espalhadas em prostíbulos ao redor do mundo, desde Nova York até Xangai, incluindo a África do Sul, Índia e China. A Zwi Migdal chegou ao Brasil em 1867, com 104 mulheres no porto do Rio de Janeira. Dessas, 67 desembarcaram e as demais seguiram para a Argentina (KUSHNIR, 1996). Já em 1872, o governo do Império extraditou um grupo de cafetões e prostitutas, mas as atividades não cessaram. Em 1913, a Zwi Migdal controlava 431 bordeis na zona do Mangue, no Rio de Janeiro e tinha dezenas de prostíbulos em Santos, São Paulo, Manaus e Belém. A denúncia e o fim da Zwi Migdak O fim da organização aconteceu na década de 1930 quando Raquel Liberman, uma das mulheres submetidas em bordel na Argentina, denunciou a Zwi Migdal à justiça. A história de Rokhl ou Raquel, como era conhecida no bordel, difere das demais mulheres trazidas pelos traficantes. Natural de uma aldeia na Ucrania, ela imigrou para Argentina em 1922 com dois filhos pequenos para se reunir ao marido que imigrara antes e a esperava em Buenos Aires. Raquel era costureira e sabia ler e escrever. Dois anos depois, porém, o marido morreu de tuberculose. Sem amparo e sem conhecimento do espanhol, ela caiu nas garras da Zwi Migdal. Permaneceu na condição de escrava e prostituta durante onze anos. Tentou fugir mas foi capturada pelos traficantes da rede. Depois de escapar pela segunda vez, Raquel conseguiu contactar o comissário Julio Alsogaray, um policial conhecido por ser incorruptível e registrou a denúncia em 31 de dezembro de 1929. A investigação descobriu não somente o tráfico internacional como o estado de escravidão e de maus tratos às mulheres. Descobriu-se, também, a cumplicidade da rede com a Polícia Federal.
Em setembro de 1930, o juiz ordenou a prisão de 108 sócios da Zwi Migdal e a captura de 334 membros secundários. Os chefes, porém, conseguiram fugir para o interior do país ou para o estrangeiro. Em janeiro de 1931, eles foram absolvidos. No entanto, o julgamento aumentou a consciência pública sobre as atividades da rede Zwi Migdal, e levou à sua dissolução. Raquel Liberman faleceu em abril de 1935, aos 34 anos, vítima de câncer de tireóide, deixando órfãos seus dois filhos de 15 e 14 anos. Em sua homenagem, o governo argentino criou, em 2013, os “prêmios Raquel Liberman” dedicados aos direitos humanos contra a violência de gênero. Raquel Liberman e a notícia do julgamento da Zwi Migdal na revista “Caras y Caretas”, Buenos Aires, setembro de 1930. O fetiche das polacas na mentalidade masculina ficou marcado no tango “Esclavas blancas” (1931) de Carlos Gardel e no samba “Judia rara” (1964), de Jorge Faraj e Moreira da Silva.
“Esclavas blancas, tango, Carlos Gardel, 1931 Almitas torturadas, pobres esclavas blancas Del tango y la milonga Mujeres infecundas, autómatas del vicio Sin alma y sin amor […] Tal vez tu propia culpa, tal vez el desengaño Del hombre que has querido Y hoy, para olvidarlo, emborrachas tu alma Con tango y con champagne.”
“Judia rara, samba, de Jorge Faraj e Moreira da Silva, 1964. A rosa não se compara A essa judia rara Criada no meu país Rosa de amor sem espinhos Diz que são meus seus carinhos E eu sou um homem feliz Nos olhos dessa judia Cheios de amor e poesia Dorme o mistério da noite Canta o milagre do dia A sua boca vermelha É uma flor singular E o meu desejo é uma abelha Em torno dela a bailar.”
Fonte KUSHNIR, Beatriz. Baile de máscaras: mulheres judias e prostituição. As polacas e suas associações de ajuda mútua. Rio de Janeiro: Imago, 1996. LARGMAN, Esther. Jovens Polacas. Rio de Janeiro: BestBolso, 2008 VINCENT, Isabel. Bertha, Sophia e Rachel. Relume Dumara, 2006. RECHTMAN, Enio. Itaboca, rua de triste memória: imigrantes judeus no bairro do Bom Retiro e o confinamento da zona do meretrício (1940-1953). Dissertação de Mestrado. São Paulo: USP, 2015. ARAUJO, Taynara Mirelle do Nascimento. Madame Pommery: a prostituição das polacas no Brasil. Revista Entre Palavras. v. 5, n. 3 esp (5). GEARINI, Victória. Polacas: a intensa saga das escravas sexuais judias no Brasil. Aventuras na História, 18 dez 2020. VARSANO, Fábio. Polacas: as prostitutas judias no Brasil. Aventuras na História, 3 jun 2019. NASCIMENTO, Douglas. O cemitério das polacas em Cubatão. São Paulo Antiga. 6 jul 2017. TRENADO, Juan Manuel. Zwi Migdal, la “mafia judía” que prostituía a campesinas polacas. La Nacion, 9 nov 2018. MAZZIEIRO, João Batista. Sexualidade criminalizada: prostituição, lenocínio e outros delitos, São Paulo 1870/1920. Revista Brasileira de História, 18 (35), 1998.
Fonte: https://ensinarhistoria.com.br/encrenca-e-sacana-palavras-originadas-no-trafico-de-mulheres/ – Blog: Ensinar História – Joelza Ester Domingues