Em um só quadradinho, vivem pioneiros que enfrentaram a poeira de um Cerrado desconhecido e também crianças que sonham com uma capital ainda mais modernizada
Em 21 de abril de 1960, exatos 62 anos atrás, Brasília, cidade imaginada por José Bonifácio, sonhada por Dom Bosco, desejada por Juscelino Kubitschek, e construída do zero por milhares de candangos, nascia depois de um parto de três anos de milhares de martelos, caminhões e obras.
No início das primeiras construções, em 1957, Enildo Veríssimo Gomes, que na época tinha apenas 12 anos, visitou Brasília pela primeira vez. Mineiro de Bambuí, ele não estava aqui para ser mais uma das crianças que, ao longo da história da cidade, vieram vislumbrar a beleza e os pontos turísticos da capital.
Ele era trabalhador, que como muitas outras biografias de pessoas que vieram do interior para o novo Distrito Federal, dedicava-se ao trabalho para a sua sobrevivência. “Naquela época, você tinha que se preocupar em trabalhar e em estudar, era obrigado, se não estudasse não trabalhava. Aí deu certo, no começo de Brasília, você trabalhava de qualquer jeito para poder se movimentar”, conta o pioneiro.
Enildo viu em Brasília uma oportunidade de realizar empreendimentos, e depois de várias idas e vindas com seus familiares para a nascente capital, ele decidiu se fixar de vez em Brasília em 1960, após terminar o seu ginásio na cidade mineira de Araxá. Veríssimo era apenas um adolescente de apenas 15 anos, quando decidiu deixar a sua terra e ir morar no meio de uma cidade empoeirada no desconhecido Planalto Central.
“Em 1960, Brasília era um Eldorado [em referência à lenda indígena sobre uma cidade feita de ouro maciço na América do Sul]. O pessoal disse que aqui ganhava dinheiro e então eu vim aqui e fiquei. Um amigo da gente que morava em Araxá e estava morando aqui em Brasília, disse para eu vir para cá que ele daria um jeito, e eu vim. Morei de início em um quartinho de empregada lá na 716, até eu me ajeitar.”, relembra o mineiro.
Além das suas peças de roupa e uma inabalável confiança em uma vida melhor na nova capital, Enildo veio para com uma habilidade única que aprendeu trabalhando com um comerciante italiano em Araxá. Ele sabia fazer uma pizza feita com queijo, molho de tomate e orégano, e decidiu vender o seu lanche para funcionários públicos e para candangos que estavam construindo os prédios de Brasília.
Surgia a primeira pizzaria da capital
Nascia ali então naquelas vielas de barro, a primeira pizzaria da capital, a “Pizzas Dom Bosco”, fundada em 1960, na 107 Sul. Enildo alimentou várias gerações de brasilienses que nos momentos de fome pediam “uma dupla e um mate” , que significa duas fatias de pizza e um copo de chá, tradicional item da lanchonete que é preparado há 62 anos, se tornando um item cultural da cidade.
O empreendedor, que hoje tem 77 anos, conta que, no início, estabeleceu o seu ponto de vendas na 107 Sul por ser o “point” da cidade na época: “Ficava perto da Igrejinha, e essas quadras ao redor eram as primeiras quadras completinhas daqui”.
O pioneiro relembra que a estratégia do governo da época, era a de não cobrar impostos dos comerciantes, para assim convencê-los a permanecerem na cidade.
“Naquela época, o Governo deixava você trabalhar sem imposto, sem nada, porque senão, ninguém ficava. A hora que eles viam que você continuava e que estava ganhando dinheiro, aí você tinha que registrar. Como é que você chega em um cerradão desses, não tem nada, não tem uma boate, você não conhece ninguém. Se você não tiver facilidade, não tiver ganhando dinheiro, você fica aqui?”, conta com nostalgia o pioneiro, ao lembrar dos primeiros anos de funcionamento da sua lanchonete.
Pioneiro foi homenageado
Depois de mais de seis décadas vendendo suas icônicas pizzas, o Governo do Distrito Federal (GDF) agraciou Veríssimo com a medalha “Brasília 60 anos”, que celebrava as seis décadas de vida da cidade, completados em 2020. A condecoração foi entregue para 121 personalidades históricas nesta última segunda-feira (18), após dois anos de atraso da solenidade devido às medidas de restrição contra o coronavírus.
“Eu me senti muito feliz com esse reconhecimento. Eu venho para cá [a sua lanchonete] todo dia cedo, é o que eu sei fazer e o que eu gosto de fazer. Enquanto eu tiver saúde e vida, eu pretendo continuar. Eu gosto do meu espaço, se eu não gostasse, eu não estaria aqui até hoje”, afirma.
Veríssimo Gomes lembra que ao longo da história da Dom Bosco, muitas crianças tiveram a sua infância marcada pela sua famosa pizza. O empreendedor conta que estudantes da Escola Classe 308 Sul iam, no meio das suas aulas, lanchar escondido dos seus professores. “Na hora do recreio, eles pulavam o muro e vinham aqui escondido comer e voltavam. Aí eles também levavam pizzas para os meninos que ajudavam eles a subir o muro fazendo escadinha”, recorda o dono da lanchonete.
Uma escola antiga que educa novas crianças da capital
A Escola Classe 308 Sul, que teve muitos alunos alimentados por Enildo Veríssimo Gomes ao longo destes 62 anos, é a mais antiga da história do Plano Piloto, criada em setembro de 1959, na chamada “quadra modelo”, a primeira construída com todas as funcionalidades necessárias para uma vizinhança completa e aconchegante, com sistemas educacionais, sanitários e de lazer.
A instituição, mesmo pequena e acanhada, e que parece estar “escondida” no meio dos imensos prédios da Superquadra 308 Sul, possui um extraordinário valor histórico. Lá, em 1968, a Rainha Elisabeth II do Reino Unido, durante a sua única visita à Brasília, assistiu a um musical performado pelos estudantes.
A cadeira que ela se sentou para acompanhar o musical está guardada até os dias atuais como uma “relíquia”, ao lado da fotocopiadora da escola. “Ela fica aí no cantinho até para não sentarem muito e conseguirem preservar ela um pouquinho”, comenta uma das funcionárias da instituição.
Em 1987, a escola, que já estava “caindo aos pedaços”, foi tombada pelo então governador na época, José Aparecido, falecido em 2007. Na manchete do Jornal de Brasília de 15 de março daquele ano, a repórter Mônica Silveira comentava que o tombamento da instituição era “extremamente significativa para Brasília, assim como outras edificações que retratam o movimento da arquitetura moderna, como a Igrejinha, a Ermida Dom Bosco ou a Catedral”.
Crianças querem uma cidade mais inclusiva no futuro
Pedro Ribeiro e João Pedro, ambos de nove anos de idade, e estudantes do 4° ano da Escola Classe 308 Sul, nunca viram a Rainha da Inglaterra e nem o tombamento da escola, e sabem das histórias antigas da instituição de ensino através do que é contado pelos seus pais e professores.
Os dois meninos comentaram que são apaixonados pelas torres de televisão de Brasília. Pedro gosta da Torre de TV Digital, inaugurada em 2012, enquanto João, gosta da Torre de TV “antiga e grandona”, aberta em 1965.
“Eu gosto porque é grande, e eu gosto de altura, problema é que eu não tenho altura. Eu já subi lá e é muito alto”, aponta Pedro Ribeiro, indicando o seu monumento favorito em um mural exposto na escola.
Perguntado sobre o que ele deseja em uma Brasília futurista, daqui a mais 62 anos, Ribeiro comenta que gostaria que houvesse uma agência espacial ao lado do Congresso Nacional, para que ele possa, enfim, realizar o seu sonho de virar um astronauta. Além disso, o pequeno gostaria que todos os brasilienses tivessem um acesso gratuito à internet, “para que todos possam mexer nos seus celulares”.
Fã do icônico filme dos anos 80 “De Volta para o Futuro”, estrelado por Michael J. Fox, o pequeno sonha que as famosas estradas do Distrito Federal acabem, e que o céu azul de Brasília seja repleto de automóveis que voam. “Brasília deveria ter carro voador e com sinal voador. Eu queria que todo mundo tivesse carro voador. Você não precisaria pegar avião, era só pegar um carro e voar por cima do mar”, brinca o estudante.
Já João Pedro, sonha com uma cidade mais inclusiva, com cada vez mais estradas que possam conectar as outras cidades até o centro do poder brasileiro. “Se tivesse que sair aqui da cidade, já teria um atalho para ir. Aí você não precisaria andar na terra porque teria um caminho para cada cidade”, sonha o aluno da 308 Sul.
Engajado, João sonha com a produção em massa de energias vindas do Sol, para que o preço das contas mensais de energia, um dos maiores problemas vividos pelos adultos brasilienses, diminuam: “Eu acho que Brasília deveria ter energia solar, porque se acabasse a luz, a energia iria refletir para casa. Não teria tanta queda, porque teria uma energia extra, e isso iria economizar o nosso dinheiro”.
A professora das duas crianças é Patrícia César, que leciona na EC 308 Sul há 13 anos. Segundo ela, o fato de trabalhar em uma escola tão importante para a história de Brasília, faz com que o seu ofício se torne ainda mais apaixonante, já que cada vez mais gerações estão passando por um portão que ajudou a criar e educar novas mentes brasilienses há mais de seis décadas.
“Estar aqui já é muito importante, porque você tá em uma escola em que tem uma questão histórica muito marcante, e você pensar que tudo que a gente faz com elas é tudo que vai colher mais tarde é demais. Eu já amo a profissão, e estar aqui é só uma coisinha a mais daquilo que eu já gosto de fazer”, diz a professora. (JBr)