Maria José Rocha Lima
Um gesto nobre e raro nos nossos dias marcados pela corrida pelo sucesso e febre pelo dinheiro, pela fama e pela indiferença em relação ao próximo. O Troféu Não É Só Futebol foi concedido Confederação Brasileira de Futebol ao zagueiro Klaus, do Botafogo/RJ, por ter alfabetizado o massagista do time Ceará, quando ele pertencia ao clube.
A generosidade de Klaus me fez lembrar que os atletas constituem um segmento especial de cidadãos, segundo interpretações dos estudos de Abraham Maslow, um dos mais importantes estudiosos na história da “Psicologia Humanista.” Para o psicólogo, “as pessoas autorrealizadas têm um profundo sentimento de identificação, simpatia e afeto pelos seres humanos em geral. Sentem o parentesco e a conexão como se todas as pessoas fossem membros de sua família”.
Também é importante entender a importância do esporte e dos atletas para o país. Os atletas ocupam são um grupo de pessoas que busca uma espécie de adaptação e motivação diferenciadas. Um jeito de viver com marca própria, carisma e uma luz capaz de inspirar os outros. São cidadãos que dão um jeito de corpo, atendendo às regras do esporte, acabando por adquirir uma disciplina própria, que determina, quase sempre, um constante crescimento comportamental.
Klaus, quanso jogava no Ceará, ensinou o colega de clube a ler e escrever e recebeu premiação pela atitude. Esta história mostra que os esportistas e o futebol não se restringem às ações dentro de quatro linhas, mas alcançam a tipologia das letras, que podem ser constituídas de linhas curvas e convexas.
Contratado pelo Botafogo junto ao Ceará para a temporada 2022, o zagueiro Klaus ficou marcado por uma atitude memorável quando atuava na equipe cearense. Klaus ensinou Seu Orlando, massagista do clube, de 62 anos, a ler e a escrever. A história é contada em um vídeo no canal do Ceará no YouTube.
As aulas aconteciam quando Klaus estava na companhia de Seu Orlando no departamento médico do clube, tratando de uma lesão. “Estava no DM me recuperando e acabei ouvindo a história do Seu Orlando, que ele queria aprender a ler para poder ler as palavras de Deus. Fiz um material, dei uma pesquisada em alguns livros e começamos”, explica Klaus, revelando que Seu Orlando queria aprender para poder ler a Bíblia.
Seu Orlando teve uma infância difícil no Ceará e não foi alfabetizado. “Eu tinha muita dificuldade de ler, ainda sinto. Quando era criança, meu pai trabalhava como padeiro e a gente ficava andando de cidade em cidade todos os anos. Entrava nos colégios para estudar, mas eu saía, nunca estudei um ano todo. Não culpo meu pai nem minha mãe, eles sempre me colocaram no colégio”, conta o massagista do Ceará.
Mas, Seu Orlando não precisa se justificar, pois quem deve explicação é o Estado brasileiro, que deixa no Nordeste 70% das crianças até 8 anos analfabetas. Crianças que, humilhadas por não saberem ler e escrever, abandonam a escola quando poderiam aprender aos 6 anos, como acontece com os filhos dos ricos e das classes médias.
Em 2003, quando fui assessora especial do ministro da Educação, identificamos dezenas de funcionários que não sabiam ler e escrever, inclusive o garçom do ministro, um homem elegante, capaz e perito nas regras de etiqueta. Ele estava há duas décadas servindo no babinete ministerial, onde havia uma estante com um livro bonito, grosso, de capa dura que ele sonhava ler.
Parabéns a Klaus pela sua sensibilidade com o caso de Seu Orlando, ajudando seu companheiro de trabalho.
Maria José Rocha Lima é mestre e doutoranda em educação. Foi deputada de 1991 a 1999. É presidente da Casa da Educação Anísio Teixeira. É diretora administrativa da Associação Brasileira de Estudos e Pesquisas em Psicanálise – ABEPP. Filiada à Soroptimist International SI Brasília Sudoeste.