Maria José Rocha Lima
Disse Tom Jobim que “sucesso, no Brasil, é a pior das ofensas pessoais”. Mais uma prova irrefutável deste mal secreto foi o festival de proferimentos insinceros, falaciosos, embusteiros, enganadores, fingidos e maliciosos de algumas celebridades e internautas sobre a falecida Marília Mendonça. Algumas não conseguiram iludir nem esconder a inveja da cantora e compositora, uma das mais bem-sucedidas da história recente música sertaneja.
Além de dizer que “sucesso, no Brasil, é a pior das ofensas pessoais”, Tom também teria dito que “o bem sucedido no Brasil, além da inveja, atrai o fiscal e o ladrão”. Estas suas declarações são sempre lembradas por expressarem a legítima tradução da inveja pessoal. A aquisição de uma casa nova por parte de um amigo, parente ou vizinho pode provocar questionamentos como “deve estar roubando; veja como ele mudou! Trocou de carro, deve estar cometendo alguma desonestidade”. Não pensam no esforço despendido, na dedicação, na competência, nas horas trabalhadas. Ademais, a inveja pode ser considerada um sintoma em certos transtornos de personalidade. A inveja etimologicamente é uma palavra de origem latina. Ela vem da palavra “invidere“, que significa “não ver”. A inveja ou invídia é um sentimento de angústia, ou mesmo raiva, perante o que o outro tem. Também pode ser definida como o sentimento de frustração e rancor gerado perante uma vontade não realizada de possuir os atributos ou qualidades de outro ser, pois aquele que deseja tais virtudes é incapaz de alcançá-la, seja pela incompetência e limitação física, seja pela intelectual. Além disso, pode ser considerado um sintoma em certos transtornos de personalidade, como no Transtorno de Personalidade Borderline, no Transtorno de Personalidade Passivo – Agressiva e no Transtorno de Personalidade Narcisista.
Para a psicanálise, a inveja diz respeito àquele que não vê a realidade, que a inventa de modo fantasioso e até delirante. A pessoa invejosa não possui visão para ver a si mesmo. Sua visão está voltada para fora, para o outro. Ele deixa de perceber o que tem e, nesse caso, o que não tem passa a possuir maior importância. O invejoso quer ser o outro. Na inveja o indivíduo tem fome do outro. Na impossibilidade de comer o outro vivo, o invejoso destrói o objeto invejado. O ser humano é um ser de cultura e não de instintos. O ser humano depende do que a educação faz dele. E a raiva incontrolada, as manifestações de inveja dependem em certa medida da satisfação das necessidades nos primeiros anos de vida. Dependem das relações adequadas mãe – bebê. “A mãe suficientemente boa”, concebida pelo psicanalista inglês Donald Winnicott, poderá promover uma autoestima elevada, confiança no ambiente, confiança em si e nos outros, aplacando os instintos, como a raiva e suas manifestações como ocorrem na inveja. A raiva e manifestações invejosas incontroláveis, quase sempre, são relativas à maneira pela qual o indivíduo se vê e se avalia, ou seja, referem-se à autodepreciação, baixa confiança em si mesmo, bem como necessidades de aprovação social, de respeito, de status, prestígio e consideração. Essas relações não saudáveis geram sentimentos de intolerância e desejos de aniquilação do outro. Ele faz isso tramando, caluniando, tecendo uma teia de mentiras para que as outras pessoas sintam por ele compreensão e se tornem seus cúmplices. Desse modo, conseguem que outras pessoas fiquem contra a pessoa invejada.
Acabei de acompanhar em Expedições pelo Mundo da Cultura uma rica análise de José Monir Nasser sobre a inveja, a partir da peça Otelo, de William Shakespeare. Em Otelo, ao analisarmos a história de Iago e Otelo, vemos as desgraças causadas pela inveja. Naquele contexto, assistimos a inveja causando destruição e morte através da intriga. Otelo, personagem principal em O mouro de Veneza (Otelo), peça escrita em 1603, é um general que promove Cássio a tenente. Seu suboficial Iago sente-se traído, já que desejava ter sido o funcionário promovido. Assim, o homem começou a conceber um terrível plano de vingança que tinha como objetivo arruinar seus inimigos. No entanto, ele não parou para refletir na razão pela qual o outro veio a ser promovido e não ele. Não observou sua falta e foi fazer justiça pelo caminho instintual, o que é usual para muita gente. A partir daí, Iago, em seu ódio por Otelo e por Cássio, começou a semear a discórdia entre o casal Otelo e Desdêmona. Iago tratou de fazer com que Otelo acreditasse que Cássio e sua esposa Desdêmona estavam tendo um romance. Por ciúme, outro problema terrível, Otelo estrangula sua esposa em uma atitude absolutamente irracional. Em seguida, sabendo do erro e injustiça que cometeu, Otelo crava um punhal em seu próprio peito. Assim, Iago concebe e leva a cabo sua trama delirante e letal. Ao se deixar levar pela inveja, uma pessoa volta a um estado primário do ego.
Dessa forma, ela é dirigida somente pelos instintos, algo que aprendemos a controlar desde a mais tenra idade com o tempo e com relações saudáveis, desde o ventre e principalmente no colo da mãe. Embora a pessoa tente criar justificativas racionais para suas atitudes, na verdade, não existe razão para esse comportamento. O que existe é de fato uma pendência para a irracionalidade, isto é, uma instintividade que se traduz no comportamento primário e que pode levar alguém à insanidade.
A psicanalista austríaca Melanie Klein aborda a inveja e o ego na infância. Para ela, a origem da inveja é percebida já na primeira infância, ou fase pré-objetal. Isto porque a criança não é capaz de distinguir-se do mundo que a circunda. Assim, encontra-se na “fase anaobjetal” ou do “narcisismo primário” de Freud. Ao longo do desenvolvimento do bebê, em uma situação ideal, o sujeito ao invés de invejar aprende a sublimar, a admirar. Deseja se transformar nesse outro com capacidade de amar, de se alegrar, de viver a dor e o sofrimento, mas sem se anular. A inveja é algo que nos aprisiona. Se olharmos só para o outro, deixamos de lutar pelo que queremos.
Maria José Rocha Lima é mestre e doutoranda em educação. Foi deputada de 1991 – 1999. Preside a Casa da Educação Anísio Teixeira. Dirigente da Associação Brasileira de Estudos e Pesquisas em Psicanálise – ABEPP. Inregra o Clube Soroptimistas SI Brasília Sudoeste.