Paraquedista da FAB denunciou plano que pretendia explodir o gasômetro do Rio de Janeiro, em 1968
Há 94 anos, em 17 de julho de 1930, nascia Sérgio Ribeiro Miranda de Carvalho, alcunhado Sérgio Macaco, paraquedista da Força Aérea Brasileira e partícipe da resistência contra a ditadura militar (1964-1985). Sérgio Macaco se notabilizou por ter se negado a obedecer a ordem de seus superiores para explodir o Gasômetro do Rio de Janeiro — ideia aventada como parte de uma operação de bandeira falsa que visava justificar o expurgo violento da oposição.
A coragem de Sérgio ao se recusar a executar o plano e denunciar seus superiores neutralizou a operação e salvou milhares de vidas.
Sérgio nasceu em uma família de classe média do Rio de Janeiro, filho de um advogado e de uma dona de casa. Cursou o ensino básico na Escola Equador e no Colégio Batista. Em seguida, alistou-se na Força Aérea Brasileira (FAB), onde integrou a primeira turma de paraquedistas militares e ajudou a fundar o Esquadrão Aeroterrestre de Salvamento — o Para-Sar, unidade de operações especiais da FAB, especializada em missões de busca, salvamento e resgate em áreas de difícil acesso.
Campanha ‘Free Palestina’
Em paralelo, Sérgio também se dedicou aos esportes. Formou-se em educação física e foi campeão estadual de basquete, jogando pelo Grajaú. Sua agilidade nas quadras e o alcance de seus pulos lhe renderam o apelido de “Sérgio Macaco”, que o acompanhou até o fim da vida.
Escalado para participar de diversas missões na Amazônia, Sérgio conviveu com diferentes grupos indígenas e trabalhou ao lado de personalidades influentes da política indigenista, incluindo os irmãos Cláudio e Orlando Villas-Boas e o médico Noel Nutels. Conforme o relato de Orlando Villas-Boas, Sérgio era o militar que “mais se integrava e mais admirava a cultura indígena”. Os nativos o chamavam de “Nambiguá Caraíba”, ou “Amigo Branco”.
Ao longo de duas décadas, Sérgio construiu uma carreira sólida na FAB, atingindo a patente de capitão e sendo laureado com quatro medalhas por sua bravura. Tinha a reputação de um militar moralmente íntegro e obstinado. Mas essas virtudes, longe de lhe renderem reconhecimento, o levariam a entrar em atrito com o Alto Comando da Aeronáutica.
Após o golpe de 1964, as Forças Armadas passaram por um acelerado processo de radicalização ideológica. O Alto Oficialato implementou uma série de medidas baseadas na Doutrina de Segurança Nacional, formulada a partir dos preceitos impostos pela Escola Nacional de Guerra dos Estados Unidos. Profundamente anticomunista, essa doutrina encorajava o uso da violência no combate aos “inimigos internos” — isso é, militantes da esquerda, movimentos sociais e opositores da ditadura em geral. O autoritarismo do regime se tornou mais severo a partir de 1968, quando grandes manifestações populares contra a ditadura eclodiram por todo o país — sobretudo após o assassinato do estudante secundarista Edson Luís Lima Souto. Os oficiais mobilizaram agentes para monitorar esses atos.
O comando da Aeronáutica ordenou aos homens do Para-Sar que colaborassem com o Exército, a polícia e os agentes do DOPS nas ações de repressão. Alocado em uma missão no Amazonas, Sérgio não participou dessas operações, mas foi informado a respeito pelo major Gil Lessa de Carvalho, comandante do Para-Sar. O capitão ficou bastante incomodado com o fato de que membros do esquadrão estavam sendo empregados em atividades repressivas. Procurou então seus superiores para manifestar suas preocupações.
O uso de paraquedistas do Para-Sar em missões de repressão havia sido ordenado pelo brigadeiro João Paulo Burnier — um egresso da Escola das Américas, instituto subordinado ao Departamento de Defesa dos Estados Unidos, incumbido de formar a “contra insurgência anticomunista” e fornecer treinamento de técnicas de tortura aos militares latino-americanos. Ligado aos setores mais radicais da extrema direita, Burnier assumira de forma interina a chefia do gabinete do ministro da Aeronáutica, Márcio de Sousa Melo.
As reclamações de Sérgio chegaram aos ouvidos de Burnier, que chamou o paraquedista para uma reunião. Durante o encontro, o brigadeiro tentou convencer Sérgio sobre a necessidade de um expurgo de oposicionistas e afirmou que o Para-Sar seria “a peça-chave para salvar o Brasil do comunismo”. Sérgio foi convocado a participar de outra reunião com Burnier e o brigadeiro Hipólito da Costa em 12 de junho de 1968. Nessa ocasião, Burnier informou ao paraquedista sobre a existência de uma operação de bandeira falsa que estava sendo planejada para “barrar o comunismo no Brasil”.
O plano de Burnier consistia em uma série de atentados terroristas que seriam executados pelos paraquedistas do Para-Sar. A culpa por esses atentados seria atribuída à esquerda, justificando uma violenta campanha para eliminar os opositores do regime.
Os atentados ocorreriam no Rio de Janeiro, a princípio como explosões de pequeno porte. Primeiro, uma bomba seria detonada na loja de departamento Sears, em Botafogo. Depois, haveria um atentado contra a Embaixada dos Estados Unidos. O alvo seguinte seria uma agência do Citibank na região central. Na segunda fase, os militares realizariam dois grandes atentados, que resultariam em milhares de mortes de inocentes.
O atentado principal visava explodir o Gasômetro de São Cristóvão — um gigantesco complexo de três reservatórios de gás, que abastecia toda a cidade do Rio de Janeiro. A explosão do gasômetro seria catastrófica. O equipamento estava situado nos arredores de uma estação rodoviária e de um depósito de gasolina. O atentado resultaria em uma série de incêndios e explosões secundárias que poderiam causar entre 10 mil e 100 mil mortes. Para potencializar ao máximo o número de vítimas, a explosão seria programada para ocorrer no horário do rush. O outro atentado seria a explosão da Represa de Ribeirão das Lajes, que abastece cidades da Região Metropolitana do Rio de Janeiro.
A comoção popular gerada pelas mortes justificaria o fechamento do regime e a eliminação dos inimigos da ditadura. Conforme Burnier, os cidadãos “exigiriam a caçada dos comunistas a pauladas”. Burnier também confidenciou um outro plano para assassinar cerca de 40 líderes políticos e militares críticos ao regime. Eles seriam embarcados em helicópteros e atirados ao mar, a cerca de 40 km de distância da costa — método que seria empregado pelas ditaduras do Chile e da Argentina.
Entre as personalidades que deveriam ser assassinadas nesses “voos da morte” estavam Juscelino Kubitschek, Dom Hélder Câmara, Franklin Martins, Vladimir Palmeira, Francisco Teixeira, Mário Covas, Carlos Lacerda, Jânio Quadros e vários outros.
Centro de Memória Sindical Sérgio Ribeiro Miranda de Carvalho
Sérgio reagiu com incredulidade ao ser informado do plano. “Acho que os senhores não estão falando a sério”, afirmou, elucidando que o que tornava uma ordem legal e moral não era a patente de quem a ordenava, mas a natureza da missão. Mesmo assim, o paraquedista compareceu a mais uma reunião, marcada para o dia 14 de junho de 1968 — essa realizada na sede do Ministério da Aeronáutica, com a participação de 41 pessoas, incluindo 36 homens do Para-Sar.
Durante a reunião, Burnier reafirmou a existência da operação de bandeira falsa e explicou aos militares que eles teriam a atribuição de executar assassinatos políticos. “Para matar em tempo de guerra, é preciso ter treinamento para matar em tempo de paz”, justificou o brigadeiro.
Terminada a exposição, Burnier perguntou aos membros do Para-Sar se eles concordavam com o plano. Os quatro primeiros inquiridos disseram que sim. Quando o brigadeiro questionou Sérgio Macaco, o capitão disse que não e afirmou que a proposta do oficial era “imoral e inadmissível para um militar de carreira”. Irritado, Burnier ordenou que o paraquedista se calasse. Sérgio replicou: “não! Não me calo! E enquanto eu estiver vivo isso não irá acontecer!”. E deixou a sala, asseverando que informaria ao ministro da Aeronáutica sobre a reunião.
No dia seguinte, Sérgio procurou seu amigo Délio Jardim de Matos, que intermediou um encontro com o brigadeiro Eduardo Gomes, ex-comandante da Aeronáutica. Surpreendido com a revelação, Gomes convenceu o brigadeiro Itamar Rocha a abrir uma sindicância para apurar a denúncia. Uma investigação oficial foi aberta e todas as 41 pessoas que estiveram presentes na reunião foram chamadas a depor. Dessas, 37 corroboraram o relato de Sérgio.
O ministro da Aeronáutica Márcio de Sousa Melo, entretanto, estava decidido a proteger Burnier. Os militares da Para-Sar que confirmaram o testemunho de Sérgio foram pressionados a mudar seus relatos. Sérgio foi condenado a 25 dias de prisão por insubordinação.
Em 1º de outubro de 1968, o episódio foi denunciado na tribuna da Câmara dos Deputados pelo parlamentar Maurílio Ferreira Lima, do MDB. No mesmo dia, Itamar Rocha, responsável por abrir o inquérito, foi exonerado. Embora já fosse público, o caso foi ignorado pela maior parte da imprensa. Uma corajosa exceção foi o Correio da Manhã, que publicou reportagem sobre o caso como matéria de capa. Pery Cotta, o jornalista que escreveu a matéria, foi preso.
Logo após a promulgação do AI-5, Sérgio foi cassado e compulsoriamente reformado, sem direito a receber o soldo. Ele ainda seria processado por falsidade ideológica, mas acabou sendo absolvido. Os demais militares que denunciaram Burnier também foram presos e sancionados. Já Burnier não apenas manteve-se no cargo como foi posteriormente promovido, sendo indicado para comandar a 3ª Zona Aérea. Ele ainda seria implicado como um dos responsáveis pelas mortes do deputado Rubens Paiva e do guerrilheiro Stuart Angel Jones.
Sérgio Macaco se recusou a solicitar o benefício da Lei da Anistia. Afirmava que não poderia aceitar “perdão oficial”, já que nunca cometera nenhum crime. Ele foi homenageado em 1985, já no contexto da redemocratização, recebendo da ALERJ o título de “Cidadão Benemérito do Rio de Janeiro”. Filiou-se ao PDT de Leonel Brizola e foi eleito como suplente de deputado federal durante a Assembleia Constituinte.
Foi efetivado na vaga em 1991, após a morte de Doutel de Andrade. Em 1989, Sérgio solicitou na Justiça a sua reintegração à reserva da Aeronáutica. O STF deu ganho de causa ao capitão três anos depois, mas tanto o ministro da Aeronáutica, Lélio Viana Lobo, quanto o presidente da República, Itamar Franco, protelaram o cumprimento da decisão.
Sérgio Macaco faleceu em 5 de fevereiro de 1994, vitimado por um câncer, sem ter sua patente restabelecida.
Por Estevam Silva/Opera Mundi